Eduardo Bolsonaro articulou uso de remédio sem aval da Anvisa em hospitais do RJ; ouça áudio
BRASÍLIA- Mensagens da quebra de sigilo do tenente-coronel Mauro Cid, na época em que era Ajudante de Ordens da Presidência da República, mostram que o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) organizou a distribuição de um medicamento sem autorização da Anvisa, a proxalutamida, para uso em hospitais do Rio de Janeiro durante a pandemia da covid-19. Procurado, o deputado não respondeu aos contatos
O Estadão revelou na última quarta-feira,27, que o então presidente Jair Bolsonaro determinou, durante a pandemia, a Mauro Cid a distribuição desse remédio para vários aliados, mesmo sem nenhuma comprovação científica de sua eficácia.
Os diálogos fazem parte das provas colhidas pela Polícia Federal na investigação do plano de golpe de Bolsonaro, mas não houve abertura de investigação específica sobre as suspeitas de irregularidades envolvendo a distribuição de proxalutamida pelo ex-presidente. A PF e o Ministério Público Federal investigam irregularidades na condução de estudos sobre o uso desse remédio, em 2021.

Eduardo recentemente foi indiciado pela PF sob acusação de tentar obstruir o julgamento da ação do golpe, por meio de ações nos Estados Unidos para obter sanções contra o governo brasileiro. Novas mensagens no celular do tenente-coronel obtidas com exclusividade pelo Estadão mostram que o filho do ex-presidente também se envolveu na distribuição da proxalutamida.
Em 15 de março de 2021, Eduardo envia uma mensagem de texto a Mauro Cid recomendando a importação de 1 milhão de comprimidos para a realização de um estudo em escala nacional, com o apoio do próprio Jair Bolsonaro. Eduardo cita que a equipe do Hospital Samel, de Manaus, estava participando da iniciativa.
“Dois pontos, bem objetivamente, sobre a proxalutamida: -Pela ANVISA, seria preciso concluir a fase 3 nos EUA, para que daí o Brasil aproveitasse os dados de lá aqui. Com isso nós teríamos no Brasil a distribuição da proxalutamida lá para agosto, setembro. Entenda, não é maldade. A ANVISA foi até gente boa. -Sugestão; fazer estudo nacional, com apoio do PR, em nome da ciência, junto com a FioCruz (ou outro laboratório que possa importar a proxalutamida da China) importando cerca de 1 milhão de pílulas, o que daria para cuidar de cerca de 20% a 25% dos pacientes hospitalizados. *Pelo o que entendi, não seria politicamente apropriado importar através do laboratório do EB. Passe isso ao JB. Equipe da Samel vai hoje para SP e retorna essa semana para Brasília pq sexta-feira eles tem reunião na ANVISA (mas podem voltar antes caso o PR queira)”, afirmou na mensagem.
Veja trechos da conversa:


Mais tarde nesse mesmo dia, Eduardo Bolsonaro envia um áudio a Mauro Cid dizendo ter organizado com a equipe do hospital Samel e com um militar responsável pelos hospitais federais no Rio de Janeiro o uso da proxalutamida no estado. Ele não diz quem seria esse militar, que já teria dado o aval para a experiência, mas na época o superintendente do Ministério da Saúde no Rio era o coronel da reserva George Divério.
A sequência dos diálogos não mostra se os remédios foram efetivamente distribuídos no RJ. No final daquele mês, Divério acabou sendo exonerado por suspeitas envolvendo contratos do ministério. Procurado, o coronel não respondeu.
Essa distribuição da proxalutamida, entretanto, seria irregular porque o medicamento não tinha autorização da Anvisa para uso pelo Brasil e não havia nenhum estudo aprovado para aplicar o medicamento no Rio de Janeiro. Até hoje, o medicamento nunca foi aprovado para uso em nenhum país de referência pelo mundo.
“Cid, a gente fez uma call aqui com o coronel, tá. Ele foi super solícito, aceitou, e o pessoal da Samel amanhã vai fazer chegar nele o produto pra fazer a pesquisa com os pacientes lá no Rio de Janeiro em algum hospital federal. Tô aconselhando ele aqui a pegar o hospital mais complicado possível porque aí eles mostram cristalinamente como que os pacientes vão começar a receber alta em coisa de três, quatro, cinco dias e vai esvaziar o hospital tá. Então é muito promissor e bola pra frente. Brigado. Dá ciência aí ao 01”, disse no áudio.
Ouça o áudio:
Hospital de Manaus forneceu medicamento
A mensagem de Eduardo Bolsonaro também cita a Samel, um grupo empresarial de Manaus dono de diversos hospitais na capital amazonense.
Segundo Eduardo, a Samel seria responsável pela entrega dos medicamentos. Outros diálogos do celular de Mauro Cid mostram que o presidente do grupo à época, Luis Alberto, foi o responsável por mandar entregar comprimidos de proxalutamida para o tenente-coronel, em Brasília.
Nas mensagens enviadas em maio de 2021, o próprio Luis Alberto diz a Cid que entrou em contato por ordem do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde. Pazuello não respondeu os questionamentos feitos pela reportagem.
Veja as mensagens:


As investigações do Ministério Público Federal, que resultaram no ajuizamento de duas ações civis públicas contra hospitais do Rio Grande do Sul pelo uso da proxalutamida sem autorização, apontam que os hospitais da rede Samel, em Manaus, receberam cerca de 20 mil comprimidos.
Procurado, Luis Alberto não retornou os contatos.
A proxalutamida nunca foi autorizada para uso no Brasil. Em setembro de 2021, a Anvisa suspendeu inclusive a importação para estudos após irregularidades nas pesquisas sobre a droga.
Entre as irregularidades estava a realização de estudos em hospitais não autorizados. Cinco hospitais confirmaram à Procuradoria Geral da República que receberam comprimidos da proxalutamida, incluindo o Hospital Samel em Manaus.
No estudo conduzido no Samel, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão competente para análise de pesquisas no País, foi retirado trecho do termo de consentimento que alertava sobre o risco do uso da proxalutamida para a para formação de espermatozóides, fetos e em caso de gravidez. Na época, o caso foi considerado o maior desvio ético da história do país.