A violência contra a mulher na Convenção da Haia de 1980 sobre subtração internacional de menores
Em agosto de 2025, o Supremo Tribunal Federal firmou um entendimento de grande impacto no direito internacional da família, ao julgar a constitucionalidade da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças (1980). A Convenção, que está em vigor internacional desde 1983, foi promulgada no Brasil pelo Decreto 3.413, de 14 de abril de 2000.
Como regra, menores de 16 anos subtraídos (abduzidos) internacionalmente por um dos genitores devem ser restituídos o mais rapidamente possível ao Estado de sua residência habitual para que os tribunais locais decidam sobre o direito de guarda (“custódia”). Excepcionalmente, a repatriação acelerada pode ser recusada pelo Estado requerido. As razões para isso são dadas pela própria Convenção da Haia, de 1980.
A questão em discussão no STF consistia em saber se a violência doméstica contra a mãe, mesmo que o filho menor não tivesse sofrido agressão direta, poderia configurar risco grave à criança de modo a impedir seu retorno ao país de residência habitual.
Ao apreciar essa questão, o STF decidiu que, embora a Convenção determine, como regra, o retorno imediato da criança ou adolescente (antes de completar 16 anos) ao país de sua residência habitual, tal obrigação não é absoluta. Exceções legítimas, notadamente nos casos de violência doméstica contra a mãe, afastam o dever estatal de repatriação automática. Tal posição está amparada pelo princípio do melhor interesse da criança, preceito que norteia a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança, de 1989, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990).
A tese adotada pelo Tribunal, de forma unânime, afirma que a obrigação de retorno imediato prevista na Convenção de Haia de 1980 não se impõe quando houver indícios de violência doméstica que coloquem em risco a integridade física ou psíquica da criança. O STF conferiu interpretação conforme:
“[…] ao art. 13(1)(b) da Convenção da Haia de 1980, para reconhecer que a exceção ao retorno imediato da criança por risco grave à sua integridade física, psíquica ou situação intolerável aplica-se nos casos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta, desde que demonstrados indícios objetivos e concretos da situação de risco, em consonância com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF/1988) e da perspectiva de gênero (arts. 1º, III, e 226, § 8º, CF/1988)” (STF, Pleno, ADI 4245 e ADI 7686, certidão de julgamento, 27/08/2025).
Esse posicionamento, que encontra precedentes em tribunais e outros países – como os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá –, coloca a proteção infantil acima da aparente literalidade normativa, no exame do sentido da expressão “risco”, prevista no art. 13.1.b da Convenção da Haia, de 1980.
Conforme este dispositivo, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar a repatriação imediata da criança, se a pessoa, instituição ou órgão que se opõe a seu retorno provar “que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”. É notável que o próprio texto já menciona o abalo à saúde psicológica do menor como um risco.
Como se viu no caso Walsh vs. Walsh, decidido no ano 2000, pelo Tribunal Federal de Apelações para a 1ª Região, nos Estados Unidos, os tribunais não podem desconsiderar a ocorrência de “grave risco de danos físicos e psicológicos às crianças em casos de violência conjugal”.
Num caso decidido em 2020 pela Corte de Apelações do Tribunal de Família da Austrália, lê-se uma avaliação que resume adequadamente a questão agora apreciada pelo STF: “do ponto de vista das crianças, a violência familiar […] é uma forma de abuso infantil, com consequências potencialmente graves para a segurança física e emocional das crianças, além de seu desenvolvimento geral” (Walpole & Secretary, Department of Communities and Justice [2020] FamCAFC 65).
No caso Pollastro vs. Pollastro, julgado em 1999 pela Corte de Apelações de Ontário, no Canadá:
“Devolver uma criança a um ambiente violento coloca essa criança em uma situação inerentemente intolerável, além de expô-la a um sério risco de danos psicológicos e físicos. Com base nos fatos deste caso, as ligações telefônicas ameaçadoras refletem uma incapacidade contínua por parte do pai de controlar seu temperamento ou hostilidade. Isso significa que a mãe, que inevitavelmente acompanharia a criança se ele fosse obrigado a retornar à Califórnia, estaria voltando para uma situação perigosa. Uma vez que a mãe é o único progenitor que demonstrou capacidade fiável para exercer a parentalidade de forma responsável, os interesses de T. [o menor] estão indissociavelmente ligados à sua segurança psicológica e física. Por conseguinte, ao ponderar se o regresso à Califórnia coloca a criança numa situação intolerável, é relevante ter em conta a grave possibilidade de danos físicos ou psicológicos para o progenitor de quem a criança é totalmente dependente”. (Pollastro v. Pollastro [1999] 45 R.F.L. (4th) 404 (Ont. C.A.).
Estes e outros precedentes do direito estrangeiro podem ser encontrados na International Child Abduction Database (INCADAT), a base de dados de jurisprudência da Convenção da Haia, de 1980.
Ao reafirmar a compatibilidade da Convenção com a ordem jurídica brasileira e harmonizá-la a uma interpretação corrente do melhor interesse da criança, a decisão do STF também sinaliza que a cooperação jurídica internacional precisa ser ponderada à luz da dignidade e da proteção dos direitos fundamentais da infância, numa visão ampla, que leve em conta a sanidade da unidade familiar como um todo.
No julgamento, que tem força vinculante para as autoridades encarregadas do cumprimento da Convenção no Brasil (ACAF/DRCI/MJ, AGU, MPF e Justiça Federal), a Suprema Corte fixou a seguinte tese:
“1 – A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por sua natureza de tratado internacional de proteção de direitos da criança.
2 – A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças.
3 – A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta.”
(STF, Pleno, ADI 4245 e ADI 7685, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 27/08/2025).
Além da tese central, do item 3 acima, o STF determinou medidas estruturais relevantes para a efetividade da Convenção. Entre elas, a criação de um grupo de trabalho interinstitucional no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para elaborar resolução que assegure maior celeridade nos processos de restituição internacional, com prazo máximo de um ano para decisão final. Disso deverá resultar um ato que compatibilize a Resolução 449, de 30 de março de 2022, à decisão do STF.
Ordenou ainda que os Tribunais Regionais Federais concentrem a competência em varas especializadas nas capitais, para garantir uniformidade e eficiência.
Também foi determinada a instituição de núcleos de apoio psicossocial e restaurativo, a adoção de selos eletrônicos para dar prioridade processual e o fortalecimento da Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF), com metas e indicadores de desempenho.
O STF também exortou o Executivo para que avalie a adesão do Brasil à Convenção da Haia de 19 de outubro de 1996 sobre jurisdição, lei aplicável, reconhecimento, execução e cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de proteção de crianças.
Ademais, conforme a decisão, caberá ainda ao Itamaraty elaborar protocolos de assistência consular a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica no exterior, tomando como referência boas práticas já implementadas pelo Consulado-Geral do Brasil em Roma.
Por fim, o STF apelou ao Legislativo para que examine a necessidade de legislação específica que regule a aplicação interna da Convenção da Haia de 1980, especialmente em aspectos processuais e probatórios. Este tópico é particularmente importante, porque cabe à parte requerida o ônus de provar que o retorno da criança a submeteria a grave risco. A decisão judicial sobre este ponto – que não se confunde com uma resolução sobre a guarda do menor – deve ser provada em juízo com um standard intermediário, como o da prova clara e convincente (clear and convincing evidence). Não bastam meros “indícios”, como se lê na tese enunciada pelo STF para as ações em questão.
A Convenção de Haia de 1980 é um instrumento muito relevante para as relações familiares. Estabelece procedimentos céleres e uniformes para localizar e devolver crianças removidas ilegalmente de seu país de residência habitual ou retidas indevidamente no exterior. Sua eficácia reside não apenas na rapidez de sua execução, mas também por contemplar exceções fundamentais, como nos casos em que o retorno da criança, sem garantias (sem undertaking) possa acarretar risco grave.
A análise de dissensos envolvendo a repatriação de crianças não pode ser dissociada da realidade da violência doméstica, inclusive numa perspectiva de gênero, frequentemente presente em litígios de família. O reconhecimento de que a violência intrafamiliar contra mulheres afeta diretamente a segurança e o desenvolvimento da criança é fundamental para garantir que a interpretação das normas internacionais seja verdadeiramente protetiva. Assim, os tribunais podem aplicar a Convenção de Haia de forma contextualizada e sensível às desigualdades que marcam as relações familiares.
No entanto, as alegações de violência doméstica não podem ser vãs, levianas ou infundadas. A recusa da repatriação pelo Estado requerido deve ser baseada em elementos sérios, pretéritos ou contemporâneos, que mostrem com razoável grau de certeza (clear and convincing evidence) que a criança ou o adolescente será submetido a risco grave, de natureza física ou psicológica, se retornar ao país de residência habitual. Os pais devem ter seu direito ao contraditório assegurado, para que sejam mitigados os riscos reversos de alienação parental, por meio do sistema de justiça.
O precedente firmado pelo STF parece combinar o respeito às normas multilaterais que vinculam o Brasil com o princípio da proteção incondicional da infância, a necessidade de reprimir a violência doméstica, a perspectiva de gênero e o devido processo legal, inclusive para os pais que venham a ser injustamente acusados de abusos inexistentes. Quando o acórdão estiver disponível saberemos se a Corte conseguiu realmente estabelecer esse necessário equilíbrio.