Defensores da anistia a condenados por 8/1 exploram brecha na Constituição contestada por juristas
BRASÍLIA – No mundo jurídico, há quem defenda que, se o perdão a crimes contra a democracia não é proibido com todas as letras no texto da Constituição, então liberado está. Outros vocalizam com segurança que a proibição está implícita porque a proteção à democracia é cláusula pétrea da Constituição. Três professores de Direito Constitucional ouvidos pelo Estadão/Broadcast concordam que uma anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro seria inconstitucional, mas discordam sobre a obviedade dessa afirmação.
A Constituição, em seu artigo 5º, lista expressamente os crimes que não são suscetíveis de graça ou anistia: tortura, tráfico ilícito de drogas, terrorismo e crimes hediondos. A “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” consta apenas na linha seguinte: a dos crimes imprescritíveis e inafiançáveis. Por isso, juristas veem uma brecha que é utilizada por quem defende a anistia aos condenados pelo 8 de janeiro.
Para Wallace Corbo, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o argumento a favor da constitucionalidade da anistia parte de uma premissa correta. “A Constituição fala expressamente em crimes que não admitem anistia. Mas a conclusão transformaria a Constituição em um ‘pacto suicida’ – abriria caminho para todo tipo de ataque sujeito a perdão futuro”, disse.

Para o professor Vitor Rhein Schirato, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a vedação à anistia no caso de crimes contra a democracia é uma “consequência óbvia” do trecho que trata da impossibilidade de fiança e prescrição. “A Constituição não admite anistia para quem atenta contra a Constituição. É óbvio e inquestionável”, observou. “É basicamente dizer que, se você tentar matar uma pessoa e ela te perdoar do além, está tudo certo”.
Ana Laura Pereira Barbosa, professora de Direito na ESPM, avalia que o artigo 5º “deveria ter dito, mas não disse” que crimes contra a democracia não estão sujeitos à anistia. “A defesa de que uma anistia deste tipo seria contrária à Constituição parte da interpretação de que, como esses crimes contra a democracia são imprescritíveis e inafiançáveis, também não seriam necessariamente suscetíveis a anistia”, afirmou.
“Acredito que seria um grande retrocesso caso o Legislativo aprovasse a anistia após eventual condenação. Contudo, apesar de discordar do conteúdo, acho importante deixar claro que não é um caso óbvio”, observou Barbosa.
O jurista Lenio Streck, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), disse em artigo publicado no portal Conjur que o principal argumento a favor da anistia é a tese chamada de “textualista”, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”.
“Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista – que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia para os golpistas – por certo responderia que ‘a lei não proíbe ursos’. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque”, argumentou Streck.
Um precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) também pesa contra a anistia. Em 2023, a Corte derrubou o indulto concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ao ex-deputado Daniel Silveira, condenado a 8 anos e 9 meses de prisão por ataques ao Supremo. Por isso, a tendência é que uma eventual anistia será derrubada assim que chegar ao Tribunal.
Na ocasião, vários ministros destacaram que crimes atentatórios aos Estado de Direito, implicitamente, não podem ser objeto de graça e indulto. O ministro Alexandre de Moraes disse que há uma “limitação constitucional implícita” para o indulto, a mesma que existe para um eventual indulto a crimes atentatórios ao Estado Democrático. “Seria possível o Supremo aceitar um indulto a todos os eventualmente condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a democracia?”, questionou.
Desde o início do julgamento de Bolsonaro e outros sete réus no STF por tentativa de golpe, bolsonaristas intensificaram a articulação para aprovar uma anistia “ampla, geral e irrestrita” aos condenados pelo 8 de janeiro.
Como alternativa à anistia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP) propôs a redução das penas dos condenados com base em entendimento que é apoiado até mesmo por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento é que os crimes de golpe de Estado e de atentado violento contra o Estado Democrático de Direito absorvem um ao outro e que um réu não pode ser condenado ao mesmo tempo pelos dois.
“A discussão sobre as penas é muito mais razoável. O Congresso sempre tem a prerrogativa de reduzir penas de crime, e nesse caso existe uma discussão enorme que é um erro do legislador quando criou dois tipos penais para o mesmo crime”, avalia Schirato, da USP.