9 de setembro de 2025
Politica

‘Brasil precisa reencontrar caminho da retomada do Estado de Direito’, diz Fernando Schüler

O cientista político Fernando Schüler avalia que o Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou um “Poder Moderador”, instância da época do Império que tinha a prerrogativa de interferir nos demais Poderes. Ele considera que o Supremo tem tomado decisões que cabem ao Congresso Nacional.

“O Brasil precisa reencontrar o caminho institucional de retomada do Estado de Direito. O Estado de Direito é a nossa proteção”, afirmou Schüler, que passará a integrar a equipe de colunistas do Estadão.

Schüler terá uma coluna em texto que será publicada no site do Estadão aos sábados. A estreia é no próximo fim de semana. Na versão impressa do jornal, suas análises farão parte das edições de domingo. Ao longo da semana, ele vai tratar dos temas mais relevantes do cenário político brasileiro em três vídeos.

O cientista político avalia ser inegável que houve movimentos para uma virada de mesa após a eleição de 2022, mas vê problemas na condução do processo contra Jair Bolsonaro (PL) feita pelo STF, assim como no caso dos condenados pelo 8 de Janeiro.

“Tudo isso cria um caldo, digamos assim, jurídico e político para uma discussão como a da anistia.”

O Brasil precisa reencontrar o caminho institucional de retomada do Estado de Direito, é a nossa proteção, diz Schüler
O Brasil precisa reencontrar o caminho institucional de retomada do Estado de Direito, é a nossa proteção, diz Schüler

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Pela primeira vez temos um ex-presidente sendo julgado no STF por uma tentativa de golpe. O que isso nos diz sobre a democracia brasileira?

Passamos por um momento de instabilidade, de tensão na nossa democracia. Efetivamente, no final de 2022, houve movimentações na direção de uma virada de mesa. Isso é inegável. O próprio advogado do ex-presidente Bolsonaro reconhece isso. E os fatos são conhecidos. Muita gente, não só as pessoas que acampavam na frente dos quartéis, pedindo generais, uma virada de mesa.

Isso vem muito da tradição autoritária brasileira. Você tem essa ideia de que, de alguma maneira, o general vai resolver o problema. Nós vamos ter um atalho autoritário para corrigir a democracia. Houve, dentro do próprio Palácio, conversas nesse sentido. Aquela conversa do então presidente com comandantes militares, a consulta, a ideia de um estado de defesa, a ideia de uma GLO. Tem algumas questões a partir deste fato. E este fato vai ser objeto de muita análise durante muito tempo.

Como chegamos nesse ponto? Óbvio que teve problemas nas eleições. Óbvio que há um processo de muita flexibilização das normas do Estado de Direito, teve muita censura no País. E teve esse lado de tentativa, especulação ou cogitação de virada de mesa.

Também há problemas no processo. Aquelas pessoas, especialmente o ex-presidente, não têm foro por prerrogativa de função. Isso parece um detalhe. No Brasil, a gente talvez tenha uma tradição de não nos preocuparmos devidamente, ou darmos a devida atenção, às formalidades republicanas. E as formalidades republicanas são essenciais numa democracia liberal-constitucional. Na minha impressão, e eu me lembro até da avaliação feita pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello, o próprio ministro Fux. Primeiro, deveria ter sido respeitada a instância devida. Me parece básico isso.

Há uma discussão jurídica, que eu acho que é o cerne da discussão do julgamento do Bolsonaro. Que houve articulações, cogitações, conversas, consultas, é inegável. Que isto configure crime no sentido da tipificação no Código Penal, da Lei de Defesa da Democracia? O presidente faz uma consulta aos comandantes militares. A Procuradora-Geral da República interpreta, no fundo, a consulta já como o curso do golpe, o curso da virada de mesa. Há outros juristas que encaram isso como atos preparatórios, atos preliminares. Não teria sido dada a ordem, teria havido um recuo.

Isso não está em questão objetiva no julgamento, porque acho que a decisão está tomada. A Primeira Turma tem uma posição fixada, seja por maioria ou unanimidade. Mas será objeto de muita reflexão no direito, na historiografia, na ciência política brasileira por muito tempo.

Os advogados de defesa apontaram esses problemas na condução do processo. Eles argumentaram que o Judiciário, de forma geral nos últimos anos, em especial em relação ao Bolsonaro, invadiu a competência de outros Poderes. O senhor concorda?

É evidente que a Constituição, a vida brasileira, acabou conferindo ao Supremo Tribunal Federal um enorme protagonismo na política. Não sei se dá para a gente chegar ao ponto de chamar de uma juristocracia e certamente não é uma ditadura do Judiciário, porque aí é um pouco de exagero, um pouco de espantalho, mas obviamente virou o centro, talvez uma espécie de poder moderador da República.

Você tem, por exemplo, uma interpretação muito larga, muito ampla e flexível do marco temporal das terras indígenas. É uma discussão que em tese deveria caber ao Congresso Nacional. Uma definição que foi tomada na Constituinte, vai para o Supremo. Todas as reformas foram judicializadas. Nós temos um processo das ações originárias no Supremo muito amplo no Brasil. Partidos políticos, organizações sindicais, OAB, isso é muito amplo, um ponto muito fora da curva em democracias. Isso é uma indução à judicialização de qualquer questão.

De fato, a Suprema Corte brasileira virou o poder moderador da República. Isso é inegável. E aí você tem decisões que ,na minha visão, claramente caberiam ao Congresso e que estão na órbita do Supremo.

O caso mais explícito foi recentemente a regulação das redes sociais. Ali, de fato, o Supremo mudou o conteúdo da regulação das redes sociais no Brasil a partir do que foi aprovado pelo Congresso em 2014, que é o Marco Civil da Internet. Mudou a forma, reinventou a regulação de redes sociais no Brasil. Na minha interpretação, isso caberia claramente ao Congresso Nacional.

Inclusive, é interessante, você tem ali dentro do Supremo um certo pluralismo, uma diversidade de visões. Só que aquela diversidade de visões não representa o País. Quem representa a diversidade de visões do País é o Congresso Nacional. Discussões sobre o conceito de liberdade, a extensão da liberdade individual, o tipo de controle, o tipo de papel que se quer do Estado, questões normativas da democracia que tipicamente cabem a um Congresso porque expressa a diversidade de visões da sociedade.

Um dia, em algum momento, acho que talvez nós vamos, de fato, realizar o que vários ministros verbalizam, mas também não fazem, que é a autocontenção do Supremo Tribunal Federal.

O cientista político Fernando Schüler é o novo colunista do Estadão  Foto: Daniel Teixeira/Estadão
O cientista político Fernando Schüler é o novo colunista do Estadão Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A anistia, seja ao ex-presidente, aos demais réus do núcleo central ou aos condenados pelo 8 de Janeiro, também seria um tema exclusivo do Congresso? O STF poderia derrubar a anistia?

O STF derrubou um decreto legislativo sobre o IOF. O STF, recentemente, mudou a idade de aposentadoria de policiais federais mulheres. Óbvio que isso vai terminar judicializado.

O processo da anistia, necessariamente, é longo. Tem que ser pautado e votado na Câmara, pautado e votado no Senado. Vai ser vetado e precisa derrubar o veto, se for o caso. O governo ou os partidos associados ao governo vão entrar com uma ação no Supremo, e isso vai ser judicializado. Não acho que isso se resolve este ano. É muito difícil.

A não ser que se busque este caminho, que hoje é conduzido pelo presidente do Senado, o senador Alcolumbre, de um acordo que evite o veto, que evite a judicialização e, portanto, seja aceitável para o Executivo, para o Supremo, e para a maioria do Congresso.

Obviamente, hoje nós estamos longe desse consenso. A base de apoio do ex-presidente Bolsonaro não quer [esse caminho]. Aliás, o senador Flávio Bolsonaro chamou de anistia meia-bomba.

A grande questão, evidentemente, é o tratamento que a anistia vai dar ao ex-presidente Bolsonaro. Se ele entra ou não entra, se ele pode, portanto, recuperar, eventualmente, a elegibilidade lá adiante, se pode ser revisto o resultado previsível do julgamento. Essa é a questão.

Agora, essa discussão só faz sentido político e jurídico porque há erros no processo. E o Brasil, às vezes, é um país meio avestruz. A gente faz de conta que não tem erros, que não tem problema.

Desde o tarifaço em julho, houve uma melhora na aprovação do governo Lula, segundo as pesquisas. Essa melhora é momentânea ou é algo que aponta uma tendência mais duradoura, influenciando na eleição?

O governo vem fazendo uma opção pelo curto prazo. Isso dito pelo próprio governo. A ministra Simone Tebet, há três ou quatro meses atrás, disse ‘olha, vamos ter que fazer um ajuste, quem sabe depois das eleições, em novembro do ano que vem’.

Recentemente houve um estudo da Instituição Fiscal Independente mostrando a insustentabilidade do arcabouço fiscal. Você tem um crescimento muito forte e orgânico da despesa primária, da despesa chamada obrigatória, especialmente Previdência, BPC. O governo concedeu um aumento bastante substancial para o funcionalismo público.

O governo vem acumulando um (orçamento) parafiscal. Nós tiramos os precatórios, a própria PEC Emergencial, as transferências sociais, o próprio Bolsa Família. Na época que a PEC Emergencial foi feita, na transição de 2022, eu dizia que era um cheque sem fundo. Não tem sustentabilidade fiscal para isso. Estamos autorizando despesas sem a contrapartida fiscal, real.

Você teve, mais recentemente, as enchentes do Rio Grande do Sul, incêndios, as queimadas, a própria compensação das fraudes do INSS, e agora as tarifas. Nós nos especializamos em extrateto, em parafiscal. Isso é um problema. Só os precatórios imagina a bomba fiscal que tem para o próximo governo que assumir resolver em 2027, seja ele qual for.

Agora, os dados de curto prazo da economia estão longe de serem catastróficos. A inflação está razoavelmente sob controle. Temos um desemprego baixo, um crescimento medíocre, mas medíocre no padrão brasileiro não está muito fora da curva. E é isso. Muita economia informal, uma transferência de renda muito robusta. Você tem hoje um problema de mão de obra. Por que você tem muita economia informal?

Não sou contra transferência de renda, mas ela é robusta para o padrão brasileiro, uma média de R$ 660 no Bolsa Família. Cresceu muito a base, o próprio BPC também. A partir disso você tem uma indução ao trabalho informal.

Muita gente não quer abrir mão da transferência de renda, e com razão, e aposta no mercado informal. É um desincentivo à formalização do trabalho. O que é perfeitamente compreensível do ponto de vista da economia das pessoas, mas é um problema para o País. O Brasil precisa encontrar um caminho de não se tornar uma imensa nação com cidadãos dependentes do Estado. Isso é um desafio civilizatório do Brasil.

A ideia de que nós vamos gradativamente aumentando a carga tributária, ou mantendo uma carga alta, não fazendo reformas no sentido de melhorar a produtividade, e ampliando a dependência dos programas de gratuidades e transferência de renda, dependência dos cidadãos diretamente em relação ao Estado, na minha concepção é o que eu tenho chamado de leviatã assistencialista.

É uma visão inviável do futuro do País. Agora, isso não fica claro no debate eleitoral. O debate eleitoral é um debate que tende ao curto prazo. Acho que o governo recuperou por ‘n’ razões. Acho que melhorou pela questão econômica, a inflação de alimentos teve um declive, então as pessoas sentem no supermercado, sentem quando fazem compras.

No Canadá, na Austrália, em grandes democracias, quando houve essa ameaça externa (das tarifas impostas pelo governo Trump), os setores que se contrapõem a isso ganham politicamente.

Se isso vai ser ou não sustentável, a impressão que se tem é a seguinte: quando as tarifas surtirem efeito, os efeitos econômicos não são bons para o governo. O governo se antecipou, fez as compensações, muitos Estados também estão fazendo, aí é uma questão se eles vão dar conta do custo que essas empresas terão. Há uma certa incógnita.

Mas os dados de pesquisa hoje não autorizam dizer que o governo vive uma situação politicamente confortável. E essa análise, na minha visão, também será fundamental para a decisão do (governador) Tarcísio de Freitas, assumir ou não (a candidatura a presidente em 2026), porque ele tem um custo de oportunidade alto em sair do governo de São Paulo no dia 2 de abril.

A gente vive um certo momento de indefinição. O governo estancou a sangria, recuperou na margem um pouco de aprovação, o índice varia de pesquisa para pesquisa. Hoje nós estamos numa espécie de grande empate técnico, se você fizer uma média de pesquisas. A polarização brasileira continua de vento em popa.

 

 

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