Fim do julgamento de Bolsonaro não deve tirar STF do centro do conflito político com Congresso
O julgamento de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe não representa um ponto final no protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF) na arena política. Juristas ouvidos pelo Estadão avaliam que a Corte seguirá no centro das disputas, seja pelas investigações que ainda miram o ex-presidente e outros parlamentares, seja pela reação do Congresso, onde avançam projetos como a PEC da Blindagem e a anistia do 8 de Janeiro, que prometem ampliar o conflito entre os Poderes. Em paralelo, partidos já articulam para 2026 a formação de uma maioria contrária ao STF no Senado, o que pode abrir espaço até para pautas de impeachment contra ministros da corte.
Bolsonaro e aliados são réus em ação que apura uma suposta trama golpista para reverter o resultado das eleições de 2022. O Supremo retoma o julgamento nesta terça-feira, 9, com o início dos votos dos ministros da Primeira Turma. A expectativa é de que a sentença saia até sexta-feira, 12.
No mesmo tribunal, Bolsonaro também responde a outras investigações, como o inquérito das milícias digitais, o caso das joias e a suspeita de coação à ação penal do golpe, na qual foi indiciado ao lado do filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Ao todo, são oito frentes sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes em que Bolsonaro é investigado ou já foi indiciado.

Para o pesquisador e professor do Insper Diogo Werneck, esse histórico ajuda a explicar por que o desfecho do julgamento não encerra a trajetória de protagonismo do Supremo na arena política, iniciada no mensalão, consolidada na Lava Jato e prolongada no governo Bolsonaro.
Nesse percurso, diz, o tribunal ganhou centralidade e elevou o atrito com Congresso e Executivo, ao passar a julgar diretamente dezenas de políticos e, mais recentemente, enfrentar os ataques do governo Bolsonaro às instituições – que culminaram no próprio ex-presidente no banco dos réus da Primeira Turma.
“O caso Bolsonaro poderia ser lido como o fim de um ciclo e até seria o ideal que ocorresse, com o Supremo dando um passo para trás, mas a quantidade de investigações em curso mostra que a Corte continuará no centro das disputas, inaugurando uma nova fase de embates com os Poderes”, afirma Werneck.
O pesquisador da USP Luiz Gomes Esteves concorda e avalia que, embora a decisão do Supremo seja um marco importante, seus efeitos não se dissiparão de imediato. Para ele, o julgamento estimula a reação do Congresso funcionando como pano de fundo para uma agenda mais ampla dos parlamentares, que inclui medidas de interesse direto da classe política, como a PEC da blindagem e a recente alteração aprovada no Senado na Lei da Ficha Limpa, que reduz o tempo de inelegibilidade de condenados por crimes contra o sistema financeiro e improbidade administrativa.
“O julgamento de Bolsonaro é o gatilho, mas o que está em jogo são mudanças que interessam ao conjunto do Congresso, e a anistia do 8 de Janeiro é só a mais visível delas”, afirma Esteves.
Na Câmara, o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, articula a proposta de anistia geral e a defende como forma de pacificar o País. “Há uma maioria consolidada, temos que pautar esse tema”, afirma. O líder da oposição, Zucco (PL-RS), segue na mesma linha e diz que o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), deve levar a matéria ao plenário. “Temos esse entendimento e precisa acontecer o quanto antes”, completa.
O texto ganhou novo fôlego depois que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), entrou em campo. Como mostrou o Estadão, na última quarta-feira, 3, ele esteve em Brasília, onde se reuniu com Motta e com os presidentes do PP, Ciro Nogueira, e do Republicanos, Marcos Pereira. No mesmo dia, em São Paulo, encontrou-se com Sóstenes e o pastor Silas Malafaia. Em paralelo, Tarcísio tem mantido conversas com ministros do Supremo para sentir o clima da Corte.
Essa movimentação mostra que não haverá apaziguamento na relação entre Congresso e Supremo, avalia a professora da ESPM-SP e pesquisadora da USP Ana Laura Barbosa. Ela afirma que as discussões sobre anistia e outros projetos que buscam limitar o poder individual dos ministros indicam uma tentativa do Legislativo de dobrar a aposta, o que mantém o cenário de instabilidade e conflito. “O julgamento de Bolsonaro não diminui a tensão e pode, ao contrário, impulsioná-la”, completa.
Os especialistas avaliam, porém, que o tensionamento não parte apenas do Congresso. Para Werneck, o próprio Supremo alimenta esse ambiente de conflito. Ele pondera que uma postura mais contida dos ministros, com menos decisões individuais e maior colegialidade, poderia reduzir o atrito com o Legislativo. “Ao concentrar tantas decisões individuais, o Supremo se expõe e alimenta a percepção de confronto com o Congresso”, afirma.
Zucco critica o poder de decisão individual dos ministros do STF. O parlamentar argumenta que não é razoável que um único magistrado derrube, de forma isolada, decisões tomadas por centenas de parlamentares eleitos, o que, em sua visão, desequilibra a harmonia entre os Poderes e enfraquece a legitimidade democrática do Congresso. “Esse ativismo judicial desequilibra os Poderes e afronta a autonomia do Legislativo. Veja como Moraes vem decidindo contra Bolsonaro”, diz.
Esse protagonismo individual não é exclusivo de Moraes. O número de decisões do Supremo com impacto direto sobre mandatos de deputados e senadores cresceu quase 20 vezes desde 2005: foram apenas 36 entre 1988 e 2004, contra mais de 700 desde então. Além de Moraes, políticos agora miram também o ministro Flávio Dino, que concentra investigações sobre supostos desvios de emendas parlamentares.
A tensão com a Corte, entretanto, também parte do Executivo. Como mostrou o Estadão, cresceu o número de decisões em que ministros intervêm em temas ligados ao governo, levantando questionamentos sobre os limites da atuação do STF na implementação de políticas públicas – atribuição originalmente do Executivo.
O confronto já mira o cenário de 2026. Partidos de oposição traçam como estratégia conquistar maioria no Senado, Casa responsável por abrir processos de impeachment contra ministros do Supremo.
Para o professor de ciência política do Insper Leandro Consentino, o cálculo eleitoral inclui ainda a tentativa de ampliar a influência na escolha de futuros indicados à Corte, já que os nomes precisam ser aprovados pelos senadores. “É por lá que vão tentar enfraquecer o Supremo e, pela primeira vez, há chances reais de impeachment de um ministro”, afirma.
Ele acrescenta que o cenário pode se agravar caso o próximo presidente eleito repita o perfil de confronto institucional de Bolsonaro, abrindo nova frente de choques entre Executivo e Supremo. “Esse julgamento não fecha uma etapa, mas confirma que o STF continuará no centro das disputas políticas do país”, completa.