Famílias recompostas: como fica a herança de filhos de diferentes casamentos
Ser “filho” é um título que não expira. A idade dos herdeiros não importa, e o fato de o pai ou a mãe terem se casado novamente ou iniciado novas uniões também não muda isso. Pela lei brasileira, os descendentes são herdeiros necessários (art. 1.845 do Código Civil). Em outras palavras: todos os filhos do autor da herança — tenham vindo do casamento atual, de uniões anteriores ou até de relações que nunca chegaram a ser casamento ou união estável — têm direito à herança. A própria lei organiza essa ordem no art. 1.829 do Código Civil: a sucessão legítima começa pelos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, com algumas exceções ligadas ao regime de bens (não há concorrência, por exemplo, na comunhão universal e na separação obrigatória; e, na comunhão parcial, não há concorrência se o falecido não deixou bens particulares).
Quando a lei fala em descendentes, inclui quem veio “abaixo” do falecido na linha familiar: filhos, netos, bisnetos e por aí vai. Mas há uma regra de prioridade importante (art. 1.833 do Código Civil): os de grau mais próximo excluem os mais remotos, salvo o direito de representação. Traduzindo: se a pessoa falece deixando cinco filhos (três do casamento atual e dois de casamentos anteriores) e dez netos, herdam apenas os filhos, em partes iguais. Os netos só entram se estiverem representando um filho que já tenha falecido antes (o chamado pré-morto).
Diante dessa realidade, existe um caminho para organizar o patrimônio em vida e reduzir conflitos: o planejamento sucessório. Ele permite alinhar, dentro da lei, a vontade de quem possui os bens com a forma de partilha depois da morte — por meio de ferramentas como testamento, doações com cláusulas, organização societária, entre outras. Como explica a jurista Maria Berenice Dias, o planejamento sucessório é uma atuação preventiva: busca ajustar a sucessão legal à vontade do titular e evitar conflitos que costumam desgastar famílias e até diminuir o patrimônio a ser transmitido.
Esse planejamento, porém, precisa ser feito com cuidado e orientação técnica. Medidas tomadas às pressas ou com a intenção de prejudicar outros herdeiros podem ser invalidadas pelos tribunais. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, no AI nº 2193181-68.2019.8.26.0000 (julgado em 18/11/2019), analisou um caso em que um VGBL foi contratado às vésperas do falecimento do titular, internado e gravemente doente, tendo como único beneficiário um dos filhos. O Tribunal entendeu que se tratava de “planejamento sucessório” voltado a lesar os demais sucessores e determinou a colação de metade do valor ao espólio (considerando que os outros 50% presumiam-se da companheira, cotitular da conta), reformando a decisão anterior. Ou seja: quando há aparência de manobra para burlar a partilha, a Justiça corrige o rumo.
Em síntese, para famílias recompostas vale a regra da igualdade entre filhos e a ordem legal da sucessão, com participação do cônjuge sobrevivente conforme o regime de bens. Quem deseja reservar bens específicos para pessoas determinadas deve planejar em vida, com assessoria de advogado, para respeitar os limites da lei e evitar litígios. Informação clara, documentos organizados e escolhas antecipadas costumam valer mais do que qualquer disputa no inventário.