Fux descarta organização criminosa e tira de Bolsonaro responsabilidade pelo 8 de Janeiro
O voto do ministro Luiz Fux era o mais aguardado no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e dos outros sete réus do “núcleo crucial” da trama golpista. No curso do processo, Fux foi o único ministro da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que sinalizou a possibilidade de se distanciar – ainda que parcialmente – do relator, Alexandre de Moraes, o que alimentou esperanças no entorno do ex-presidente. Nesta quarta-feira, 10, ele superou as expectativas e divergiu dos dois votos que já foram dados – além de Moraes, Flávio Dino também votou, acompanhando o relator. As divergências de Fux são em torno de questões processuais, que na avaliação dele deveriam anular todo o processo, e também no mérito. O ministro já descartou três crimes atribuídos a Bolsonaro e a seus aliados na denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Se forem acompanhadas pela maioria, as ressalvas têm potencial para reduzir consideravelmente as penas em caso de condenação.
A sessão está no intervalo para o almoço, que não estava previsto, mas o voto do ministro se estendeu para além do esperado. Fux retomará sua manifestação para abordar a acusação de golpe, a mais importante da denúncia.
O julgamento ocorre na Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros. Estão pendentes os votos de Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, que por ser o presidente do colegiado se manifesta por último. Após a conclusão de Fux, a votação será retomada nesta quinta, 11.
Fux fez uma série de ressalvas que podem beneficiar os réus no momento de definir o tamanho das penas, além de ter oferecido subsídio político para os aliados do ex-presidente ao encampar uma série de críticas das defesas ao STF. Ele defendeu que o tribunal não pode fazer “juízo político” nem julgar segundo “convicções morais”.
As expectativas de Bolsonaro e de seus aliados sobre o voto de Fux eram mais políticas do que jurídicas. Isso porque uma única divergência não tem nenhum efeito prático no resultado do julgamento, já que seriam necessários pelo menos três votos para salvar o ex-presidente. No entanto, a manifestação foi além do esperado e anima as defesas com a possibilidade de um voto pelas absolvições. A manifestação poderá ser explorada para alimentar a retórica de perseguição a Bolsonaro. Discursos nesse sentido perderiam força se o resultado fosse acachapante. Além disso, um placar unânime fecharia as portas para manobrar a Primeira Turma e tentar levar o caso ao plenário do STF.
O voto de Fux também abre um atalho para, no futuro, em caso de mudança na composição do STF, as defesas pedirem a anulação do processo alegando vícios formais.
Além do ex-presidente, respondem ao processo Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa e Casa Civil), Augusto Heleno (ex-ministro do GSI), Alexandre Ramagem (deputado federal e ex-diretor da Abin), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha) e Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro).

Foro privilegiado
As primeiras divergências de Fux estão relacionadas a questões preliminares – questionamentos processuais que não têm relação direta com o mérito das acusações, mas que na avaliação dele deveriam anular todo o processo.
As preliminares já haviam sido analisadas e rejeitadas pela Primeira Turma do STF ao receber da denúncia, em março, mas foram suscitadas novamente pelas defesas nas alegações finais do processo.
Fux justificou que votou para receber a denúncia porque “in dubio pro societate”, ou seja, em caso de dúvida sobre a autoria ou materialidade de um crime, a ação penal deve seguir em benefício da sociedade, permitindo o aprofundamento das investigações. Agora, no entanto, o ministro concluiu que o STF não é competente para julgar a ação e, por isso, na avaliação dele, todos os atos processuais estão contaminados, o que na prática colocaria fim ao processo.
Segundo Fux, o tribunal não tem jurisdição para julgar o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados porque eles não têm mais prerrogativa de foro.
“Estamos diante de uma incompetência absoluta, que é impassível de ser desprezada como vício intrínseco ao processo. Como é sabido, em virtude da incompetência absoluta para o julgamento, impõe-se a declaração de nulidade de todos os atos decisórios praticados”, defendeu o ministro.
Em julgamento concluído no dia 11 de março, mas que já tinha maioria formada desde setembro de 2024, os ministros do STF ampliaram o alcance do foro privilegiado e expandiram a competência da Corte para julgar autoridades e políticos. O tribunal definiu que, quando se tratar de crimes funcionais, o foro deve ser mantido, mesmo após a saída do cargo.
Para Fux, como o julgamento foi encerrado já em meio ao inquérito que investigou a trama golpista, a mudança de jurisprudência não poderia ser aplicada ao processo para não gerar “questionamentos sobre casuísmos”.
“A garantia do juiz natural assegura a imparcialidade do julgador, evitando que sua designação ocorra por finalidades menos ortodoxas”, defendeu o magistrado.
O ministro fez uma comparação indireta com a Lava Jato. Embora não tenha mencionado diretamente a operação, relembrou que o Supremo Tribunal Federal “já anulou um processo por inteiro por incompetência relativa”, em referência à anulação de condenações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Além disso, para Fux, se o STF considerou que Bolsonaro deve ser julgado no tribunal, a votação deveria ocorrer no plenário, composto pelos onze ministros da Corte, e não nas Turmas, órgãos fracionados.
“Se [Bolsonaro] está sendo julgado como e presidente fosse, essa ação deveria se iniciar no Pleno do Supremo Tribunal Federal”, disse o ministro ao defender que, ao julgar o caso na Primeira Turma, o tribunal está “silenciando as vozes de ministros que poderiam exteriorizar sua forma de pensar sobre os fatos”.
Embora, agora, tenha suscitado o argumento sobre a incompetência do STF, Fux votou para condenar centenas de réus do 8 de Janeiro sem objeção sobre a jurisdição do tribunal.
Com o posicionamento, o ministro se opõe à visão majoritária do STF. O tribunal considera importante decidir o caso no mérito e responsabilizar o “andar de cima” do plano de golpe, não apenas os radicais que vandalizaram a Praça dos Três Poderes no 8 de Janeiro.
Cerceamento de defesa
O ministro também considerou que houve cerceamento do direito de defesa no processo do “núcleo crucial”. Os advogados reclamam que não tiveram tempo suficiente para analisar todas as provas obtidas pela Polícia Federal no inquérito. São centenas de arquivos que somam mais de 70 terabytes. As defesas queriam mais prazo para buscar, no emaranhado de documentos e relatórios, elementos que eventualmente pudessem enfraquecer a denúncia da PGR.
As provas usadas na denúncia são selecionadas pela acusação dentro de um universo maior de evidências, como a íntegra de conversas extraídas de celulares apreendidos, arquivos recuperados em computadores e cópias de documentos manuscritos.
As defesas afirmam que o material foi entregue sem nenhuma organização, o que segundo os advogados dificultou ainda mais a checagem de um volume extenso de provas.
O ministro afirmou que ele próprio teve “dificuldade para elaborar um voto imenso” e que “um verdadeiro tsunami de dados” foi disponibilizado “sem identificação suficiente e antecedência minimamente razoável”. Por isso, na avaliação dele, o processo deveria ser anulado desde o recebimento da denúncia.
Organização criminosa
A denúncia imputa cinco crimes ao ex-presidente e a seus aliados – organização criminosa armada, golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado contra o patrimônio da União. As penas em caso de condenação podem chegar a 43 anos de prisão.
Em seu voto, Fux analisou as premissas previstas na lei e na doutrina para a caracterização de cada crime. De saída, o ministro descartou condenar os réus por organização criminosa armada. Ele argumentou que uma organização criminosa precisa ser “permanente para praticar crimes indeterminados, nunca para praticar um crime único”. Nesse sentido, segundo a linha argumentativa do ministro, mesmo que Bolsonaro e seus aliados tenham demorado meses nas fases de cogitação, planejamento e preparação do golpe, não poderiam ser punidos como organização criminosa por se tratar de um mesmo plano. “O agrupamento não configura crime autônomo, mas concurso de pessoas”, defendeu.
A Lei das Organizações Criminosas prevê que o uso de armas pela organização criminosa pode aumentar a pena em caso de condenação. Fux também descartou essa qualificadora (circunstância que pode agravar a sentença). Ele ponderou que, embora Bolsonaro e seus aliados tivessem acesso e autorização para porte de arma de fogo, não houve uso delas.
“Não há qualquer descrição na denúncia de que os réus tenham empregado arma de fogo em qualquer momento. O fato de haver militares entre os denunciados ou pessoas detentoras por lei do direito ao porte de arma de fogo não atrai por si só a incidência da majorante”, defendeu Fux.
Se prevalecer o raciocínio do ministro – o que é improvável -, Bolsonaro poderia ser diretamente beneficiado. O ex-presidente é apontado como o líder de organização criminosa do plano de golpe. Segundo a acusação, a tentativa de golpe foi orquestrada por ele em benefício próprio. E, como líder, Bolsonaro pode ser condenado a uma pena maior.
O ministro também sinalizou que pode encampar uma das teses das defesas sobre a “fusão” dos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito (artigo 359-L da Lei nº 14.197) e de golpe de Estado (artigo 359-M da legislação), imputados na denúncia. Fux defendeu que os réus sejam condenados apenas por golpe de Estado, o que poderia reduzir consideravelmente as penas. “O delito de abolição violenta constitui-se como meio para a prática de outro delito que é o golpe de Estado”, argumentou o magistrado.
A Primeira Turma decidiu que as dosimetrias vão ser estabelecidas depois que todos os ministros votarem.
8 de Janeiro
O ministro chancelou a principal tese da defesa de Bolsonaro sobre o 8 de Janeiro. Os advogados Celso Vilardi e Paulo Amador da Cunha Bueno, que representam o ex-presidente, sustentam que ele não pode ser condenado pelos crimes de deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado contra o patrimônio da União, associados ao quebra quebra na Praça dos Três Poderes, porque ele não estava no Brasil na data das manifestações.
Fux afastou Bolsonaro dos atos de vandalismo. O ministro defendeu que o ex-presidente não pode ser punido como líder intelectual dos protestos golpistas em Brasília porque, em sua visão, não ficou comprovado o vínculo dele com as manifestações.
“Não há provas nos autos de que os réus tenham ordenado a destruição e depois de omitido. Pelo contrário, assim que a destruição começou, um dos réus [Anderson Torres, então secretário de Segurança do DF] tomou medidas para evitar que o edifício do Supremo fosse invadido”, argumentou.
Segundo Fux, “mesmo havendo prova de liderança em atos de vandalismo”, a responsabilidade não pode ser “automática”. “Não é cabível uma responsabilidade solidária em condenação penal”, defendeu.
Para o ministro, punir o ex-presidente e seus aliados pelos protestos seria “uma postura excessivamente paternalista” com os golpistas.
“Essa análise partiria da premissa equivocada de que os indivíduos que causaram a destruição e a baderna não tinham qualquer autonomia ou a mínima noção de que estavam cometendo crimes”, argumentou.
Além disso, segundo a linha de raciocínio de Fux, os crimes de ano exigem “ação física direta”, ou seja, só quem efetivamente estava na Praça dos Três Poderes poderia ser condenado.
“Como regra o crime de dano exige ação, os verbos do tipo penal são destruir, inutilizar e deteriorar, o que reclama uma ação física direta por parte do autor para que o resultado ocorra”, acrescentou.
O ministro deu ainda um outro argumento de ordem processual ao descartar os crimes. Segundo o ministro, os delitos de ano são “subsidiários”, ou seja, um meio para concretizar o golpe. Por isso, na avaliação dele, apenas o crime mais grave – a tentativa de golpe – deveria ter sido imputada na denúncia.
“Havendo intenção de cometimento de outro crime mais grave por meio da destruição o crime de dano evidentemente cede lugar para o delito de maior gravidade”, argumentou.
‘Juízo político’
Ao longo do processo, Fux funcionou como uma espécie de revisor informal do processo. Participou de todos os interrogatórios de testemunhas e réus. Foi o único contraponto a Moraes, desde o recebimento da denúncia.
Antes de votar nesta quarta, 10, o ministro avisou aos colegas que não permitiria intervenções ao longo de sua manifestação. Fux já havia dito ontem que não queria ser interrompido para não perder a linha de raciocínio. Ao vetar de antemão os apartes, o ministro também minimizou a chance de ser contraditado, evitando embates com a maioria.
Na introdução do voto, o ministro defendeu o “minimalismo” no STF, disse que o tribunal não pode fazer “juízo político do que é bom ou ruim” e afirmou que os processos devem ser julgados com isonomia, em uma espécie de defesa da velha máxima de que “processo não tem capa”, ou seja, que o juiz não pode levar em consideração quem são os réus ao definir a sentença.
Fux defendeu que o tribunal tem o dever de julgar com “objetividade, rigor técnico e minimalismo interpretativo, a fim de não se confundir o papel do julgador com o do agente político”.
“O juiz deve acompanhar a ação penal com distanciamento, não apenas por não dispor de competência investigativa ou acusatória, como também por seu necessário dever de imparcialidade”, disse o ministro.
A declaração ocorre no contexto de críticas ao ministro Alexandre de Moraes, acusado pelas defesas de assumir um papel de acusador, por vezes mais veemente que a Procuradoria-Geral da República. Moraes rebateu ontem os ataques e afirmou que o juiz não é uma “samambaia jurídica”.