A contundência de Fux surpreende
No julgamento do dia 10 de setembro, o ministro Luiz Fux fez duras críticas à condução de uma ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF), apontando violações ao direito de defesa que, segundo ele, comprometem a legitimidade de todo o processo. Em tom contundente, afirmou que a restrição ao contraditório e à ampla defesa gera nulidades insanáveis e converte o processo em um simulacro, um “não-processo”.
O voto, pela sua força retórica, causou espanto no mundo jurídico. Não apenas pelo mérito — afinal, a defesa é cláusula pétrea da Constituição — mas também pelo contraste com decisões anteriores do próprio ministro em casos criminais de menor repercussão.
Fux foi categórico: sem juiz competente e sem defesa plena, não há processo penal legítimo. O que se produz é um rito vazio, incapaz de atender às exigências de um Estado Democrático de Direito. A advertência toca em ponto sensível: julgamentos céleres, porém desidratados de garantias, podem ser eficazes para produzir condenações, mas não para sustentar a confiança da sociedade no sistema de Justiça.
O raciocínio é claro: a defesa não é obstáculo, mas condição da legitimidade. Sem contraditório efetivo, o processo não cumpre sua função democrática de equilibrar forças entre acusação e acusado.
No voto, o ministro destacou práticas que, a seu ver, inviabilizaram a plena defesa: prazos exíguos para manifestações, incompatíveis com a complexidade dos autos; negativa de produção de provas relevantes, capazes de alterar a versão dos fatos; uso de provas emprestadas de inquéritos conexos, sem contraditório específico.
Cabe destacar que esses pontos violam o artigo 5º, inciso LV, da Constituição, que assegura a ampla defesa, além de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos. O direito de preparar adequadamente a defesa, com tempo e meios suficientes, é obrigação estatal e não mera formalidade.
A contundência de Fux surpreendeu também porque contrasta com seu histórico em julgamentos de furtos de pequeno valor. Nos últimos anos, o ministro acompanhou a linha mais rigorosa da Corte ao negar a aplicação do princípio da insignificância em casos de furtos de produtos básicos em supermercados e farmácias — desodorantes, fraldas, alimentos.
Nesses processos, o STF sustentou que, mesmo diante de prejuízo econômico mínimo, a reincidência impediria o reconhecimento da atipicidade. Assim, réus pobres e reincidentes foram julgados com extrema severidade, ainda que em delitos ligados à sobrevivência.
Um caso emblemático ocorreu em 2019, em Nova Lima (MG). Um homem foi preso por furtar cinco desodorantes avaliados em R$ 69,95. Os produtos foram recuperados e devolvidos, mas a defesa pleiteou a insignificância. O pedido foi negado por Fux, que destacou a “contumácia delitiva” do réu. A mensagem foi clara: não há espaço para indulgência, mesmo em pequenos furtos famélicos.
A questão que surge é inevitável: por que o mesmo rigor não se aplica, com igual intensidade, aos processos de grande envergadura política e institucional?
Esse contraste expõe um paradoxo. Quando o réu é um cidadão comum, o STF aplica a lei com dureza e nega flexibilizações. Mas, quando o processo envolve ex-autoridades políticas, as próprias garantias constitucionais parecem negociáveis em nome da eficiência processual.
Assim, a incoerência mina a autoridade do tribunal. O Supremo, guardião último da Constituição, não pode ser visto como rigoroso com os vulneráveis e complacente com os poderosos. A defesa plena deve valer para todos, em todos os processos. A seletividade corrói a legitimidade da Corte e alimenta o discurso de que a Justiça tem pesos e medidas distintos.
Ao alertar para o risco de transformar julgamentos em “não-processos”, Fux lança um recado incômodo à própria instituição da qual faz parte. Sua crítica atinge a espinha dorsal do STF: a necessidade de manter sua autoridade não pela imposição, mas pela coerência.
O ministro parece reconhecer que, em processos de enorme repercussão, a pressa pode se converter em inimiga do direito. Mas esse raciocínio precisa ser levado às últimas consequências. Se vale para os casos de alta complexidade, também deve valer para os pequenos processos criminais, em que a vida de cidadãos pobres é profundamente afetada por condenações severas.
O voto de Fux abre uma oportunidade de reflexão. O STF precisa decidir se será um tribunal que garante a defesa em qualquer circunstância ou se continuará a oscilar conforme o perfil do réu e a relevância política do caso. A coerência é o único caminho para preservar a legitimidade. Não há como sustentar o discurso da defesa plena nos processos de maior visibilidade e, ao mesmo tempo, negar o princípio da insignificância a quem furta alimentos ou produtos de higiene.
Em última análise, o Supremo está diante de uma escolha sobre si mesmo. Ou reafirma o compromisso com a Constituição de 1988 — que protege a dignidade de todos os acusados — ou continuará a alimentar a percepção de que sua jurisdição oscila conforme a conveniência política.
Portanto, o alerta de Fux, ainda que tardio e marcado por contradições, deve ser levado a sério. O risco de um “não-processo” é também o risco de um “não-Supremo”: um tribunal que se distancia de sua função essencial de guardião das garantias constitucionais.