O julgamento mais importante da história recente da democracia brasileira
Um país marcado por vinte e um anos de ditadura talvez não tivesse qualquer expectativa, no sentido de lhe faltar esperanças de fato, de poder assistir, ao vivo e a cores, em tempo real, um julgamento de tentativa de golpe de estado como o que acompanha neste momento.
Militares e o alto escalão do governo anterior incluídos na condição de réus, dentre eles o próprio ex-Presidente da República, é de fato um acontecimento não somente exemplar para a democracia brasileira, ainda que combalida tantas vezes e em plena tentativa de se fazer forte e rija, mas um avanço no plano jurídico sem precedentes, pois recrudesce a ideia de que para que sejam punidos os algozes do estado democrático de direito a tentativa basta, pois ultrapassada e concluído o golpe, óbvio e ululante que julgamento não haveria.
Como bem assentou o Ministro Gilmar Mendes, que não participa da Turma Julgadora do STF destes atores políticos mencionados, incluindo, dentre eles, aqueles fardados que detinham poderes de estado que lhes foram conferidos pelo próprio ex-Presidente, a democracia no Brasil passou por grandes provações, sobretudo a partir de 2018, e sofreu ataques sem precedentes em sua história recente.
O ato de julgar, no jargão popular, pode perpassar um entendimento superficial de que julgar é tomar como responsável alguém de antemão, sem cuidados, sem provas, precipitadamente, no entanto, julgar, nos limites do processo judicial, só se faz quando calcado em pilares básicos do direito, quais sejam, ampla defesa, contraditório e devido processo legal. Neste contexto, nenhum deles, absolutamente nenhum destes pilares foram de qualquer modo arranhados ou desfeitos, à medida que provas abundantes puderam ser contrastadas pelas defesas dos réus e foram colhidas de modo lícito, dentro das balizas constitucionais e infralegais para tanto, no tempo da cadência dos atos processuais previstos em lei e que resultam num julgamento final, aliás, recorrível, sempre, sob as mesmas premissas processuais de cabimento.
Deste modo, sim, como até a mídia americana vem alcunhando, este é o julgamento do século para o Brasil, ao poder confrontar seu passado mais remoto, seu passado recente e seus valores mais caros, cuja democracia, em si, é a única a poder abraçar e desenhar um futuro vindouro no qual todos somos iguais perante a lei, que nos salva de desmandos e nos permite sobrevoos coletivos de liberdade e respeito aos interesses de uma nação e cada qual de seus cidadãos.
Nunca militares de alto escalão foram julgados antes pelos seus atos ditatoriais ou tentativa de fazê-lo, ao menos após a redemocratização brasileira. Num país em que até a indenização de familiares vítimas da ditadura militar é vista como vantagem espúria e ganância financeira e a determinação da alteração de dados nas certidões de óbito dos desaparecidos políticos são atos recentíssimos, isto tudo, por um lado, ainda que tardiamente, mostra-se fundamental, ainda que mantido o retrogosto amargo dos anos de chumbo e de espera por uma resposta estatal justa.
Ademais, no que toca ao julgamento em curso, dos oito réus em questão, dentre eles, Bolsonaro, além da ampla defesa e do contraditório até este momento plenamente exercidos, há ainda o socorro de recursos inclusive para o plenário do STF, dependendo da natureza e da divergência que será discutida e da dosimetria das penas caso sejam condenados. Há os embargos de declaração, para esclarecimentos de pontos contidos nos votos; embargos infringentes, caso haja a absolvição por dois votos de algum réu, habeas corpus e recursos superiores endereçados ao plenário do Supremo. Portanto, nenhum julgamento será imposto sem que as partes dele possam se defender.
Sim, é um momento histórico. Os réus desta trama golpista, chamemos assim o contexto completo dos atos que nos levariam a uma outra ditadura ou regime de exceção, sejam eles resultantes de atos de sujeitos do “núcleo crucial”, “mandantes” ou “massa de manobra”, poderão valer-se da mesma democracia que atacam, do mesmo estado de direito que insistem em desrespeitar e da mesma Constituição Federal que alvejam deliberadamente aos brados histéricos pelas praças brasileiras, para defenderem-se em juízo, através de seus advogados, depoimentos e testemunhas e, se nada houver que os condene, podem crer, absolvidos serão, pois o contrário disso é absolutamente verdadeiro também.
Julgamentos deste gênero fortalecem nossa Democracia, nossas Instituições de Estado e também o Direito como um todo. Um país sem leis não faz história, sequer a tem. Um país que não julga seus criminosos está fadado ao ostracismo histórico. E um país que não permite a defesa da Justiça e dos seus cidadãos, sequer de nação poderá ser chamado.