13 de setembro de 2025
Politica

Corpo de músico brasileiro morto pela ditadura argentina é identificado 50 anos depois

Um mistério de meio século, envolvendo as ditaduras brasileira e argentina, está desvendado. O corpo do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior foi identificado pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). Tenório Jr. desapareceu em 18 de março de 1976 após sair do Hotel Normandie, região central de Buenos Aires. Nunca mais foi visto. Agora se sabe que fora morto a tiros, e seu corpo enterrado sem identificação numa vala comum na periferia da capital.

Seu caso se tornou uma incógnita na história argentina e brasileira. Vinicius de Moraes escreveu o poema “Desaparição de Tenório Jr.” em 25 de março de 1976, segundo registro no Acervo Digital de Vinicius, sob o número VM2PI026_70 COD. REF. FCRB:

Sei que agora estás só. Não ouço nada

Do som do teu piano.

Sei que estás só, apenas respirando

O branco pó da madrugada

E infinitamente caminhando

Caminhando sem fim por uma estrada

Ninguém sabe por quê, como nem quando.

O caso ganhou notoriedade internacional porque o músico acompanhava Toquinho e Vinícius de Moraes em uma turnê, que semanas antes havia começado no Uruguai. As investigações da época da ditadura militar argentina mostram que a polícia local já sabia que o corpo de Tenório Jr. fora jogado em um terreno baldio a 20 quilômetros da capital argentina, na localidade de Don Torcuato. Mas não estava identificado oficialmente.

O corpo sem vida foi encontrado pela polícia e depois enterrado numa cova rasa no Cemitério de Benavidez como NN (do latim Nomen Nescio, ou, corpo cuja identidade não foi determinada). Tenório Jr. se transformou no cadáver masculino nº 46.927, e assim ficou por meio século.

Segundo a EAAF, organização não-governamental criada em 1984 dedicada a buscar, recuperar e identificar restos mortais de pessoas desaparecidas em contexto de violência, a identificação foi possível 50 anos depois por meio da comparação das impressões digitais que a polícia argentina havia coletado na época. Há 100% de certeza quanto aos resultados.

Em comunicado divulgado pela EEFA neste domingo, 13, o corpo do pianista brasileiro foi encontrado em 20 de março de 1976, dois dias depois do desaparecimento do músico. Estava cravejado por cinco tiros.

Já em 1976, a perícia forense dos argentinos havia estimado que a morte de Tenório Jr. havia ocorrido até 48 horas antes de ser encontrado, de acordo com informações da certidão de óbito assinada pela delegada Beatriz R. Klein, em 22 de abril daquele ano. Ou seja, o assassinato teria ocorrido na própria noite em que Tenório Jr. sumiu nas ruas de Buenos Aires.

Tal informação derruba a versão – até então a única – de que o músico teria passado alguns dias sendo torturado na Escola de Mecânica da Armada (ESMA) até ser executado com um tiro na nuca. A ESMA foi o principal centro de prisão, tortura e assassinato de presos políticos pela ditadura militar argentina.

A versão do tiro na ESMA foi divulgada por Claudio Vallejos, um ex-integrante da Marinha argentina, que em 1986 deu entrevistas para a imprensa brasileira e, posteriormente, depoimentos a autoridades brasileiras. Vallejos foi preso no Brasil na década de 2000 por estelionato, e depois deportado para a Argentina em 2012, a pedido do governo daquele país. O Supremo Tribunal Federal (STF) havia deferido pedido do governo argentino para extraditar Vallejos, que era acusado de tortura, homicídio, sequestro qualificado e desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar no país vizinho. Crimes cometidos entre 1976 e 1983. Ele morreu em 2021, aos 63 anos.

Fotos do processo judicial sobre o corpo de Tenório Jr. mostram que ele fora jogado num matagal na localidade de Tigres, região metropolitana de Buenos Aires. É possível observar que estava trajando uma camisa, paletó e uma calça estilo “boca de sino”, provavelmente de tecido jeans, conforme a moda da época. A perícia da polícia argentina demonstra ainda que ele fora atingido por cinco tiros, a maioria nas costas. E aponta hemorragia como causa da morte.

O prontuário de Tenório Jr. foi recuperado pela Procuradoria de Crimes contra a Humanidade, entidade argentina que apura casos ocorridos no período da ditadura (1976-1983) e arquivados sem identificação das vítimas.

A EAAF comparou as impressões digitais colhidas pela polícia local em Tigres na época e registradas na ação judicial, com os dados arquivados sobre Tenório Jr. na polícia brasileira. O exame papiloscópico confirmou a identificação do corpo até então tido como desconhecido.

A família de Tenório Jr. foi notificada sobre a descoberta no último dia 5 de setembro pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), órgão do governo federal brasileiro que acompanha o caso, por meio do procurador da República Ivan Marx.

A turnê sul-americana de Vinícius e Toquinho

Tenório Jr. era um dos três músicos que acompanhavam a dupla Toquinho e Vinícius na turnê pela América do Sul, que começou no Uruguai. A trupe era composta ainda por Amélia Colares, a futura cantora Amelinha, que fazia sua primeira viagem internacional, além do baterista Mutinho e o baixista Azeitona. A cantora não seguiu para a Argentina.

Aos 84 anos, Mutinho está na ativa até hoje. “Ele (Tenório) era um inovador, junto com Dom Salvador, Luiz Eça, aquela pessoal todo. Era música pura”, relembra o baterista.

Mutinho recorda vários momentos tensos vividos durante a temporada argentina, uma semana antes do golpe de estado dado pelos militares. “Eles (polícia) abriram o (estojo do) violão do Toquinho na (avenida) Corrientes. Um dia eu estava na calle Florida, e vi puxarem um cara para dentro do carro. Eles desconfiavam de todo mundo. Uma coisa horrorosa”, descreve em entrevista exclusiva.

Para o músico, Tenório Jr., homem alto, cabeludo e de barba espessa, pode ter sido confundido com alguma pessoa considerada “subversiva” na Argentina. “A postura dele não era agressiva, mas chamava a atenção. Ele era um doce”, afirma Mutinho, que anos depois compôs com Toquinho uma música em homenagem ao amigo, “Lembranças”. “Tenório saiu sozinho na noite/ Sumiu, ninguém soube explicar”, diz parte da letra da canção. “Era um excelente pianista, uma pessoa tranquila, dedicada ao seu trabalho e amigo de todos”, disse Toquinho em entrevista de 2012. Ao lançar o álbum “Elis, essa mulher”, em 1979, Elis Regina fez duas dedicatórias: “À presença de Bituca. À ausência de Tenório Jr.”.

No final de 2023, uma placa em homenagem ao músico brasileiro desaparecido foi recolocada na fachada do hotel Normandie, em Buenos Aires, por iniciativa da Embaixada brasileira. A original havia sido instalada em 2011, após proposição feita pelo então deputado Raúl Puy.

Ainda segundo o baterista, na noite do dia 18 de março de 1976 (a turnê terminara na véspera, após apresentação no Teatro Gran Rex, localizado na avenida Corrientes), ele fora jantar com o também músico Raul Ellwanger na casa de um amigo. Tenório Jr. decidiu ficar no hotel.

Na volta do encontro em Buenos Aires, outro susto: uma forte explosão foi ouvida nas proximidades do Normandie. Com medo, Mutinho voltou correndo para o hotel.

Durante a madrugada, ele soube que o colega não retornara ao hotel depois de ter saído para comprar alguma coisa na rua. Segundo relatos, Tenório Jr. tinha saído para comprar remédio para dor de cabeça e alguma coisa para comer.

Começava ali um périplo sem fim. Ex-diplomata brasileiro, o poeta Vinicius de Moraes permaneceu em Buenos Aires tentando conseguir alguma informação sobre o integrante de seu grupo musical. Sem sucesso.

“Ele (Vinícius) estava muito triste, abatido, silencioso, taciturno. Mas brigou muito para saber o que tinha acontecido”, conta a advogada argentina Marta Rodríguez Santamaria, que era estudante na época e acompanhou a turnê – e se casaria com o poeta brasileiro logo depois.

Carioca do bairro de Laranjeiras, na zona sul da capital do Rio de Janeiro, Tenório Jr. nasceu em julho de 1940. Começou a tocar profissionalmente no início dos anos 1960, no Manhattan Club, em Copacabana. Entre suas admirações musicais, estavam João Donato, Moacyr Santos, Johnny Alf e, fora do Brasil, o pianista americano Bill Evans, que chegou a conhecer. Gravou com vários nomes da MPB, como Wanda Sá, Lô Borges, Milton Nascimento, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Sidney Miller, Nana Caymmi e Gal Costa – no LP “Índia”, lançado em 1973, onde Gal canta “Volta”, de autoria de Lupicínio Rodrigues, acompanhada por Tenório.

Antonio Adolfo, 78 anos, também pianista, frequentava a casa de Tenório Jr. desde cedo. “Ele fez minha cabeça musicalmente”, diz hoje. “Era impressionante a mão do Tenório, parecia que era feita pra tocar piano. Uma coisa meio mágica.”

O pianista vítima da ditadura militar argentina teve um LP autoral, “Embalo”, gravado em 1964, com nomes como Paulo Moura, Raul do Trombone, Hector Costita e Milton Banana, entre outros.

O assassinato de Tenório Jr. aconteceu quando sua mulher, Carmen Magalhães Tenório Cerqueira, estava grávida do quinto filho – Leonardo nasceu no mês seguinte ao do desaparecimento. Eles haviam se casado em 1967.

Os dois filhos mais novos, João Paulo e Leonardo, já faleceram. Elisa, a mais velha, tem hoje 57 anos, Francisco tem 56 e Margarida, 54. Tenório tem cinco netas e três netos que, claro, também não conheceu. Ainda abalados com a notícia – que já não esperavam, após tanto tempo –, os filhos preferem não dar entrevistas.

Aos 33 anos, Carmen, que antes do casamento era professora de inglês, se viu obrigada a criar sozinha cinco filhos. Faleceu em 2019, com 75, sem ter as respostas que perseguiu durante toda a vida. “Ela nos ensinou a ter autonomia”, diz Elisa, a filha mais velha. Além de gosto pela cultura: “Nossa casa sempre teve muito livro, muito disco”.

Em 2023, o caso Tenório Jr. ganhou as telas do cinema com o longa de animação “Atiraram no Pianista”, dirigido pelos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal. Foram entrevistadas quase 140 pessoas, durante duas décadas. A voz do personagem principal, um jornalista fictício de Nova York, é do ator Jeff Goldblum, que também é pianista.

O filme aborda o nascimento da Bossa Nova e o samba-jazz nas casas musicais do Rio de Janeiro. “Paulo Moura (saxofonista morto em 2010), cada vez que falava de Tenório Jr., caía uma lágrima. Robertinho Silva (baterista e percussionista), no meio da entrevista, começou a chorar como uma criança”, lembra Trueba, um apaixonado por música brasileira. Muitos derramaram lágrimas por Tenório Jr.. Que só agora, 50 anos depois, terá direito a um atestado de óbito oficial e verdadeiro.

Há ainda uma história que, conforme lembra a filha Elisa, guarda semelhanças com o filme vencedor do Oscar “Ainda Estou Aqui”: Rubens e Eunice Paiva também tiveram cinco filhos. A Justiça só emitiu atestado de óbito do ex-deputado em 1996 – 25 anos depois de seu desaparecimento. Os filhos de Tenório Jr. ainda esperam por essa certidão, mas agora já sabem que levaram seu pai como um desconhecido para um cemitério nos arrabaldes de Buenos Aires.

Identificação de vítimas da ditadura Argentina

Nos últimos 40 anos, mais de 140 pessoas já foram identificadas através de exames de impressões digitais. No total, a equipe da EAAF já localizou 1.647 restos ósseos ou registros de homicídios vinculados ao terrorismo de Estado militar da ditadura Argentina.

Segundo o levantamento mais recente, 838 pessoas desaparecidas foram identificadas. No caso de Tenório Jr., que nunca teve qualquer envolvimento político (só queria saber de música, dizem amigos), a família soube do paradeiro após 49 anos, cinco meses e 18 dias de seu desaparecimento.

Na época do desaparecimento do músico brasileiro Tenório Jr., a Argentina vivia dias de convulsão política. Apenas seis dias depois do desaparecimento do pianista, a presidente Maria Estela Martinez Perón, a Isabelita, foi deposta pelas Forças Armadas. Isabelita estava na poder desde julho de 1974, após a morte de Juan Domingo Perón.

Na sequência do golpe, o general de Exército Jorge Rafael Videla assumiu a presidência do país. Condenado à prisão perpétua em 2010 por crimes contra a humanidade, Videla morreu em 2013, aos 87 anos, no presídio Marcos Paz. Era o último integrante da junta militar que havia assumido o poder em 1976: o comandante Orlando Agosti morreu em 1997 e o almirante Emilio Massera, em 2010.

 

 

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