STF e o ativismo judicial no presidencialismo à brasileira
O colapso da legitimidade política não pode ser compreendido sem uma análise crítica das falhas estruturais do sistema político brasileiro. Argumenta-se que a crise não é meramente um problema de corrupção ou de figuras isoladas, mas sim um reflexo da disfuncionalidade do sistema presidencialista de coalizão, que se manifesta em uma série de patologias institucionais.
O presidencialismo à brasileira, caracterizado pela fragmentação partidária e pela necessidade de coalizões heterogêneas, frequentemente resulta em alianças políticas frágeis, negociadas com base em favores e distribuição de cargos, e não em plataformas programáticas sólidas. Essa estrutura de poder, além de ser um terreno fértil para a corrupção, dificulta a governabilidade e a capacidade de implementar reformas substanciais. Como resultado, o sistema torna-se refém de crises cíclicas, incapaz de oferecer respostas eficientes aos problemas sociais e econômicos.
A investigação Lava Jato é o exemplo mais notório de como a corrupção sistêmica na América Latina está intrinsecamente ligada ao modelo de “presidencialismo de coalizão”, conforme identifica Jacopo Paffarini. Esse modelo, embora tenha se consolidado como uma resposta à governabilidade em países com partidos fracos, gerou uma “barganha de poder” baseada na distribuição de cargos e recursos em troca de apoio legislativo. Essa dinâmica, por sua vez, facilita a criação de esquemas de corrupção, como o “caixa 2”, que desviam o foco do eleito de seus compromissos com a sociedade e o tornam refém de alianças políticas. Essa lógica de cooptação e barganha, que desvia o foco do eleito de seus compromissos com as comunidades locais, está na raiz da ineficiência e da distância entre o poder e o cidadão, reforçando a necessidade de mecanismos de controle direto.
Essa fragilidade do sistema presidencialista contribui diretamente para a decadência institucional. A instabilidade política e a falta de credibilidade dos poderes Executivo e Legislativo geram um vácuo que, paradoxalmente, é preenchido pelo poder Judiciário, em particular pelo Supremo Tribunal Federal. O STF, em sua atuação, passa a ser percebido como o único órgão capaz de dar respostas rápidas à crise, mesmo que para isso tenha que flexibilizar ritos, prazos e competências. Esse ativismo judicial, embora por vezes necessário, pode minar a separação de poderes, um dos pilares da segurança jurídica. A instituição judicial, que deveria ser a guardiã da legalidade, acaba por se tornar parte do próprio dilema.
Com a criação e repetição de círculos viciosos negativos de difícil ruptura, apropriações indevidas são legitimadas pelo Estado-Juiz, com a judicialização da política, o que justifica muitas decisões políticas por razões de Estado. A tradição histórica brasileira também favorece a apropriação do sistema judicial. O atraso científico e tecnológico, a rigidez e o formalismo do sistema jurídico, características que ajudam compreender a atual realidade latino-americana, sempre serviram aos objetivos pessoais e específicos do Estado patrimonial.
Em um cenário de crise, a ineficácia dos mecanismos de controle tradicionais pode induzir o poder judiciário a ocupar uma posição de ativismo político. Paffarini destaca que, diante da fragilidade do controle parlamentar, a sociedade e a mídia passaram a ver o judiciário como o único contrapeso capaz de fiscalizar o Poder Executivo. No entanto, essa mudança de dinâmica, embora tenha gerado a percepção de uma luta contra a corrupção, atos antidemocráticos e outros males sociais, também revelou os limites do controle centralizado, já que a atuação dos tribunais se torna um substituto, e não um complemento, para a fiscalização dos cidadãos. Essa “judicialização da política” só reforça a visão de que a solução não está apenas em aperfeiçoar o controle no topo, mas em fortalecer a base democrática, empoderando os cidadãos para fiscalizar seus representantes de forma direta e contínua, transparente e burocraticamente eficiente.
De um lado, a falácia do sistema político, consistente na ideia suficiente do uso da força de um poder (bem) intencionado – com o monopólio do poder decisório, uma discricionariedade ilimitada e a desnecessidade de prestação de contas – para satisfazer as tutelas dos interesses “adequados”, “necessários” e “oportunos”. De outro, a falácia do sistema de justiça correspondente, segundo a qual bastaria um sistema formal para a aplicação indistinta e imparcial do ordenamento jurídico vigente. Como adverte Ferrajoli, nenhuma garantia sobrevive pela simples inscrição de normas, sendo necessária uma luta constante e diária para consolidação das garantias de direitos e, consequentemente, da própria democracia. Um sistema jurídico, mesmo que teoricamente perfeito, não pode, por si só, garantir coisa alguma.
Essa atuação, por sua vez, alimenta o fenômeno da polarização. Quando a política falha, a população busca respostas em narrativas simplistas como àquelas baseadas na “luta do bem contra o mal”. O Judiciário, ao se tornar um ator político central, não apenas valida essas narrativas, mas também aprofunda a polarização, pois suas decisões, que deveriam ser técnicas e neutras, são interpretadas por cada lado do espectro político como vitórias ou derrotas. A banalização da ilegalidade, nesse contexto, se torna um subproduto: a “defesa da democracia” justifica a adoção de métodos que, em outras circunstâncias, seriam vistos como contrários à própria Constituição Federal.
Aprofundando essa linha de pensamento, Carl Schmitt nos alerta para o perigo de um Estado de exceção não declarado. Em sua visão, a violação de garantias processuais e a flexibilização das regras constitucionais, mesmo sob o pretexto de combater males sociais graves como a corrupção ou governos não democráticos, representam uma ameaça direta ao Estado Democrático de Direito. A legalidade constitucional não é um mero obstáculo burocrático, mas sim o pilar que sustenta o equilíbrio entre os Poderes e protege os cidadãos da arbitrariedade. A tese central de Schmitt é de que, quando o Judiciário ultrapassa seus limites constitucionais e adota uma postura de “salvador da pátria”, ele não só enfraquece sua própria legitimidade, mas também desfaz o arcabouço jurídico que deveria ser seu principal campo de atuação. A quebra do jogo democrático, iniciada pela instrumentalização das instituições, culmina na desconfiança generalizada de todo o sistema de justiça, levando à completa disfuncionalidade democrática.
Quando o sistema de justiça, em sua ânsia por eficiência, adota uma postura de “justiceira”, ele abandona a legalidade e abre um precedente para o arbítrio. A suspensão informal de ritos e garantias, justificada pelo combate a grandes ameaças, acaba por corroer a própria estrutura que pretendia defender, revelando a falência do presidencialismo de coalizão em lidar com a crise instalada. Nesse sentido, o remédio se prova um veneno letal, tornando-se mais uma disfuncionalidade do sistema, agravando a polarização e a insegurança jurídica e, assim, aprofundando o ciclo vicioso de decadência institucional.