14 de setembro de 2025
Politica

‘É a vitória da legalidade sobre a barbárie e o arbítrio’, diz jurista sobre julgamento de Bolsonaro

BRASÍLIA – O advogado Ademar Borges, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), diz que a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete por tentativa de golpe de Estado representa “a vitória da legalidade e do Estado de Direito sobre a barbárie, o arbítrio”.

Para o acadêmico, doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin “foram essenciais para enfatizar a importância de uma visão global dos fatos submetidos ao julgamento”.

Zanin chegou a citar Borges em seu voto. “A sistemática de veiculação de ameaças públicas a Poderes constituídos e a ministros do Supremo Tribunal Federal como recurso à retórica das Forças Armadas tinha capacidade potencial de afetar o livre exercício do Poder Judiciário, tanto que houve a necessidade de um esforço institucional bastante grande para preservar a integridade do processo eleitoral e neutralizar efeitos desestabilizadores das graves ameaças proferidas, e faço aqui referência à lição de Ademar Borges”, afirmou o ministro.

Ademar Borges fez doutorado sob orientação do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso.
Ademar Borges fez doutorado sob orientação do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso.

Borges lançará na quinta-feira, 18, na biblioteca do STF, o livro Democracia Militante no Brasil (Editoria Fórum, 226 páginas), em que faz a reconstrução teórica do conceito de “democracia militante”, introduzido pelo filósofo alemão Karl Loewenstein, propondo um modelo gradualista, com medidas proporcionais ao grau de ameaça sofrido pela democracia.

O livro tem o prefácio do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que orientou a tese de doutorado de Borges. “Neste livro, Ademar Borges oferece uma reflexão lúcida e indispensável sobre como proteger a Constituição de 1988 em momentos de crise democrática. Com serenidade, clareza e coragem, apresenta um marco interpretativo que converte episódios de instabilidade em aprendizado institucional e projeta caminhos para o futuro”, afirma Barroso.

Em uma conversa de uma hora com o Estadão, Borges disse onde a Constituição de 1988 fracassou, analisou o significado do julgamento de Bolsonaro, comentou sobre a anistia ao ex-presidente e aliados, planejada por bolsonaristas, e apresentou quais seriam, para ele, alternativas para o Brasil poder conter futuras crises democráticas.

“A nossa Constituição tem muitas promessas que estão longe de serem realizadas. E isso causa decepção, frustração e eventualmente essa frustração em alguns contextos ela pode ser canalizada para caminhos autoritários”, analisa Borges. “Temos duas tarefas básicas: impedir o retrocesso impedir que se mexa na lei do estado democrático de direito, repelir essas propostas de anistia ampla, geral e irrestrita e olhar para o futuro.”

Leia trechos da entrevista:

O Brasil vive o maior período democrático em sua história, mas também viveu, há pouco tempo, o momento mais próximo de ruptura democrática desde a Constituinte. Onde a Constituição de 1988 falhou?

Tem alguns erros fundamentais. Tem um problema que é mais amplo, que está na infraestrutura disso tudo, que é uma decepção generalizada. Na base, tem um problema que não é brasileiro e que é um problema mais generalizado, que é um problema de deficiência no cumprimento das promessas da Constituição. A nossa Constituição tem muitas promessas que estão longe de serem realizadas. E isso causa decepção, frustração e eventualmente essa frustração, em alguns contextos, pode ser canalizada para caminhos autoritários, o que aconteceu com a eleição de Bolsonaro. Um outro problema associado a esse tem a ver com a história mal sucedida no Brasil de combate à corrupção, que contribuiu para um sentimento de antipolítica, que talvez valesse a solução de um outsider. Desde a eleição do líder autoritário, se passa a um outro tipo de risco. Ele passa a mobilizar a estrutura estatal para corroer as bases da democracia.

O que representa a condenação de Bolsonaro?

O julgamento da ação penal sobre a trama golpista expressa, de maneira definitiva, a vitória da legalidade e do Estado de Direito sobre a barbárie, o arbítrio e, enfim, sobre o autoritarismo. Tratou-se, acima de tudo, de um julgamento público, imparcial e orientado por critérios jurídicos, que resultaram na afirmação de que a longa e complexa cadeia de condutas praticadas pela organização criminosa liderada por Bolsonaro colocou em risco sério e concreto a higidez da nossa democracia. E não é difícil chegar a essa conclusão: basta lembrar que tínhamos um presidente da República que mobilizou múltiplos setores do seu governo – Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal – para negar a legitimidade do resultado das eleições e permanecer no cargo. Um golpe de Estado clássico, portanto. Mas não parou por aí. Como vimos no julgamento, ficou extensamente comprovada a tentativa de Bolsonaro e de vários de seus auxiliares de acionar as Forças Armadas para consumar o golpe. Tudo isso fez parte de um plano concebido dentro do Palácio do Planalto – cujas linhas gerais foram anunciadas publicamente pelo próprio Bolsonaro – e que teve início de execução justamente no momento em que ele passou a fazer, pessoalmente, ameaças graves aos ministros do STF. O projeto autoritário de negar o resultado das eleições foi prévia e meticulosamente desenhado a partir da mentirosa campanha contra as urnas eletrônicas e contra o Tribunal Superior Eleitoral.

Quando começou, na sua leitura, a tentativa de abolição do estado democrático de direito?

A primeira realização da tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito se deu, como destacou o STF, a partir da combinação entre a nefasta desinformação contra a integridade do processo eleitoral e a escalada de ameaças institucionais formuladas por Bolsonaro contra os ministros do STF. Depois, o julgamento demonstrou, didaticamente, que a tentativa de golpe de Estado praticada no 8 de Janeiro não foi obra do acaso, tampouco uma reunião aleatória de golpistas, mas o resultado de um longo processo de desestabilização democrática concebido e colocado em marcha por Bolsonaro e vários de seus auxiliares diretos. Era o resultado por eles esperado. É preciso recordar – como fez o STF no julgamento – que, às vésperas da diplomação de Lula, Bolsonaro promoveu claro incentivo a práticas criminosas contra a democracia ao convocar as Forças Armadas e insinuar que seu futuro político dependeria da adesão popular e militar a seu projeto. Essas declarações, feitas às vésperas da diplomação, revelam inequívoco propósito golpista. Como ressaltei neste livro que publiquei recentemente, ‘após ter coordenado direta, pública e meticulosamente uma campanha golpista de grandes proporções, ignorar a responsabilidade do ex-presidente pelo resultado de 8 de Janeiro sob o argumento de que não participou fisicamente da intentona seria não só um erro imperdoável sob o ponto de vista histórico, como também jurídico’.

Como o sr. avalia os votos dos ministros?

O Tribunal realizou uma aplicação escrupulosa dos tipos penais criados pela lei de defesa do estado democrático de direito. Nesse particular, os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin foram essenciais, primeiramente, para enfatizar a importância de uma visão global dos fatos submetidos ao julgamento.

E o voto do ministro Luiz Fux?

A metodologia utilizada pelo voto vencido do ministro Fux, de fatiar e destacar episódios isolados para verificar se cada um deles, separadamente, realizava todas as exigências dos tipos penais, não dava conta do significado real da sequência encadeada de fatos imputados aos acusados. Só é possível compreender o sentido objetivo e finalístico da trama golpista a partir de uma visão global de todo o projeto autoritário: o risco de autocratização a que estivemos submetidos só é adequadamente captado pelo reconhecimento do efeito cumulativo da cadeia de agressões ao regime democrático praticada pela organização criminosa. Há um último recado muito importante no julgamento concluído. O perdão judicial não foi concedido ao colaborador Mauro Cid precisamente porque se entendeu que a Constituição não autoriza a impunidade total a quem atenta criminosamente contra o regime democrático. Há aqui uma mensagem muito clara na direção de que uma anistia ampla, geral e irrestrita como a que ilegitimamente é defendida por certos setores políticos seria considerada inconstitucional.

O sr. poderia falar mais sobre isso?

A anistia não se compatibiliza com a Constituição porque nós estaríamos deixando o regime democrático desprotegido. Nós estaríamos a afirmar que é permitido dentro de um regime democrático o próprio Estado, que agentes estatais possam tentar subverter o regime, quebrar a ordem institucional e instituir um regime autocrático. Aqui o que nós estamos discutindo é uma anistia para quem tentou e chegou perto de acabar com a nossa democracia. E esse é o crime mais grave que se pode praticar em um regime democrático. Se tolerarmos esse tipo de prática, teremos nos distanciado do eixo da opção constitucional feita em 1988. Acredito que isso a gente não pode fazer e o Supremo não pode tolerar.

A oposição apresentou um novo texto que prevê, entre outras coisas, anistia a partir do inquérito das fake news e Bolsonaro elegível para 2026. Qual sua opinião sobre essa minuta?

Eles querem mandar sinais de que estão contemplando as pautas da extrema direita. Mas tudo isso não tem muita relevância. É só parte simbólica, que quer fazer um protesto contra determinados tipos de supostas ilegalidades que o Judiciário teria praticado. O que importa é o perdão a todas as pessoas condenadas por crimes contra a democracia. Nesse ponto, o que o projeto faz é simplesmente criar um liberou geral. É simplesmente dizer que todo tipo de agressão criminosa contra o regime democrático está absolutamente perdoável. Essa alternativa é a resposta que, como eu disse, não se compatibiliza com a opção de defesa combativa da democracia que a Constituição de 1988 fez.

Quais seriam os caminhos, na sua análise, para aperfeiçoar o modelo de defesa da democracia no Brasil?

Temos duas tarefas básicas: impedir o retrocesso, impedir que se mexa na lei do estado democrático de direito, repelir essas propostas de anistia ampla, geral e irrestrita e olhar para o futuro. As ideia que apresentei no livro são os pontos de inteligência para defesa da democracia, medidas militantes intermediárias no campo eleitoral, proteção da independência judicial, especialmente para os ministros do Supremo e defesa da democracia em ambiente digital.

Poderia elaborar sobre eles?

O primeiro deles é o da inteligência para defesa da democracia. Aqui no Brasil a nossa Abin não só não exerceu a contento essa atividade, como esteve envolvida ela própria em crimes contra a democracia. Precisamos aperfeiçoar o nosso sistema de inteligência para defesa da democracia para que ele fosse mais transparente, mais submetido a controles judicial e parlamentar, para que ele tivesse objetivos mais claro de identificação de riscos autoritários. Outro tema importante é que ainda estamos num modelo binário de resposta à proteção eleitoral e partidária da democracia que é a extinção de partido político, o que é utópico. Não temos no Brasil um partido que possa ser ele todo considerado antidemocrático. Temos que criar respostas mais eficientes. Boa resposta é regrar melhor o acesso a recursos públicos. Com relação à independência do Poder Judiciário, o que temos visto é um crescimento desse discurso autoritário de possível impeachment de ministro do Supremo em razão de decisão judicial. Precisaríamos fazer uma filtragem adequada da lei de impeachment, o que implica reconhecer que a abertura de processo de impeachment exige dois terços de quórum do Senado, e não maioria simples. Tem que ter um grau de proteção equivalente ao que oferecemos a um presidente da República.

 

 

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