STF mostrou que não há espaço para aventuras golpistas no Brasil, diz Celso de Mello sobre Bolsonaro
Celso de Mello está entre os decanos mais longevos do Supremo Tribunal Federal (STF). Passou 31 anos na Corte antes de se aposentar, em 2020, sendo 13 deles como o membro mais antigo do tribunal. O ministro, que sempre foi intransigente na defesa da independência do Poder Judiciário e da democracia, considera a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) um recado claro de que não há espaço no Brasil para “aventuras golpistas” nem para “sórdidos projetos autoritários de poder”.
Em entrevista ao Estadão, Celso de Mello afirma que a decisão da Primeira Turma do STF, que condenou o ex-presidente e oficiais do altão escalão das Forças Armadas, tem uma função “pedagógica” e deixa como grande lição o ensinamento de que ninguém está acima da Constituição e das leis.
“Não se tratava apenas de julgar um episódio gravíssimo da história recente de nosso País: tratava-se, sobretudo, de reafirmar que a democracia brasileira não transige com golpes, não se submete a pressões internas ou externas, não se curva a tentações de retrocesso institucional, nem tolera a ruptura da ordem constitucional”, avalia o ministro aposentado.
Na visão de Celso de Mello, a decisão do STF teve como base provas idôneas e foi tomada “sem paixão, sem ódio, sem rancor e sem concessões indevidas”. O ministro também faz elogios a Alexandre de Moraes, relator do processo, a quem considera um magistrado “íntegro, exemplar e probo”.
Tamanha é a estatura jurídica de Celso de Mello e a importância dele para o tribunal que, mesmo aposentado, é frequentemente lembrado no plenário do STF. Não foi diferente no julgamento da trama golpista. Flávio Dino se referiu a ele como o “nosso decano de antes” e o cobriu de elogios pela “lealdade” ao Supremo.
Bolsonaro ainda pode ser beneficiado pelo PL da Anistia, projeto de lei que a oposição busca aprovar no Congresso para perdoar as penas dos golpistas.
Celso de Mello considera o projeto inconstitucional. Ele avalia que, se for acionado, o STF vai derrubar o texto. Isso, é claro, se a proposta for de fato aprovada no Legislativo. O ministro afirma que conceder anistia a quem “perverte a democracia e subverte o Estado de Direito” afronta limites explícitos e implícitos da Constituição, protegidos por cláusulas pétreas.
“Cabe destacar, portanto, a importância do reconhecimento das cláusulas pétreas de caráter implícito, que se destinam, tal como aquelas de natureza explícita, a resguardar a integridade dos princípios e valores que refletem o núcleo essencial de que emana a própria identidade do ‘corpus constitucional’, atribuindo, assim, à Constituição estabilidade e sentido de permanência e garantindo-lhe, também, entre outros meios de tutela, proteção contra retrocessos democráticos”, explica.
Para o ministro, o projeto tem ainda outro vício: coloca o Congresso na posição de “anômalo órgão revisional” das decisões do STF, o que na avaliação de Celso de Mello é “inadmissível” porque viola o princípio da separação de poderes. O PL da Anistia é, nas palavras do ministro, um “novo e ultrajante vilipêndio do Estado de Direito”.
“Profanadores da República e conspurcadores da democracia constitucional, como todos aqueles que se envolveram na organização, na coordenação, no planejamento, no financiamento e na execução dos atos criminosos a que se refere o projeto de lei mencionado, apoiado por lideranças políticas que buscam conceder-lhes anistia, não são dignos nem passíveis de merecer esse benefício da clemência soberana do Estado”, defende o magistrado.
O julgamento dos líderes do plano de golpe ocorreu em um contexto de pressão internacional, com medidas de retaliação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre os ministros, especialmente Alexandre de Moraes, que é o relator da ação penal 2668, como sanções econômicas da Lei Magnitsky e o cancelamento de vistos.
Para Celso de Mello, o presidente americano age com “prepotência imperial” e abre um precedente perigoso no contexto das relações internacionais ao tentar interferir na soberania brasileira. “Não é apenas uma afronta ao Brasil, mas uma afronta à ordem jurídica que deve reger a comunidade internacional”, opina.
O ministro afirma que as justificativas do governo dos Estados Unidos para retaliar o STF são “mendazes e manipuladas” e critica quem apoia a ofensiva – conduta, para Celso de Mello, “servil, desleal e desonrosa contra o Brasil”.
“Cabe reconhecer – e denunciar – o comportamento ultrajante de brasileiros, notadamente de conhecidas figuras públicas, em atuação no exterior ou mesmo entre nós, que vergonhosa e servilmente se curvam a um poder estrangeiro, agindo como desprezíveis traidores da pátria”, dispara o ministro.

Leia a entrevista completa com o ministro Celso de Mello:
Qual é a importância do resultado deste julgamento para a democracia no Brasil?
O julgamento revelou a extrema gravidade dos fatos sob exame, que envolvem, entre outros crimes, os de tentativa de ruptura da ordem constitucional e de organização criminosa armada, que correspondem a dois dos mais sérios delitos em um Estado Democrático de Direito.
A história do Supremo Tribunal Federal mostra que, em situações críticas, o Tribunal sempre buscou preservar, com firmeza, a supremacia da Constituição e a prevalência da ordem democrática. Assim deve ser, porque a democracia – animada pelo sopro inestimável da liberdade – não pode tolerar os que buscam destruí-la nem admitir comportamentos que se convertam em incitação à subversão da legalidade republicana.
O STF, diante desse quadro – que se desenhou fortalecido por prova penal juridicamente idônea e validamente produzida sob o crivo do contraditório e com estrito respeito às prerrogativas jurídicas inerentes ao “devido processo legal” -, soube formar seu convencimento “sine ira ac studio”, vale dizer, sem paixão, sem ódio, sem rancor e sem concessões indevidas, pois nossa Suprema Corte não se curva a pressões (internas ou externas), não se submete a maiorias ocasionais nem se intimida diante da fúria dos que desprezam a Constituição.
Esse é – e tem sido – o compromisso inarredável do Supremo Tribunal Federal com a Constituição da República e com a liberdade do cidadão.
É importante registrar o significado histórico do julgamento que nossa Suprema Corte acaba de realizar.
Nele, o Supremo Tribunal Federal reafirmou os valores do Estado Democrático de Direito, responsabilizando e julgando culpados os integrantes da cúpula do golpismo, por haverem transgredido, de modo insolente e criminoso, a Constituição e as instituições da República.
Com essa condenação criminal, o STF demonstrou que não há espaço, no Brasil, para aventuras golpistas nem para sórdidos projetos autoritários de poder.
Não se tratava apenas de julgar um episódio gravíssimo da história recente de nosso País: tratava-se, sobretudo, de reafirmar que a democracia brasileira não transige com golpes, não se submete a pressões internas ou externas, não se curva a tentações de retrocesso institucional, nem tolera a ruptura da ordem constitucional.
É importante assinalar, na perspectiva de nossa experiência institucional, que o Supremo Tribunal Federal – a despeito de episódios de grave tensão havidos em sua trajetória, como aqueles que o colocaram em conflito com alguns Presidentes da República, como Floriano Peixoto, Hermes da Fonseca, Costa e Silva e Jair Bolsonaro – soube superar as adversidades impostas pela História, resistir à pressão das circunstâncias, preservar sua dignidade institucional e manter a integridade de sua missão constitucional.
Essa permanência de fidelidade ao regime das liberdades públicas e ao império da Constituição brasileira demonstra que o Supremo Tribunal Federal — mesmo submetido a gravíssimas situações de agressão institucional e não obstante exposto a tempos procelosos — logrou manter incólume o patrimônio moral que legitima a sua existência e que constitui o fundamento de sua autoridade.
E é exatamente desse espírito de resiliência, dessa vocação de permanência e dessa incontornável lealdade à ordem democrática que deriva a legitimidade da Suprema Corte do Brasil.
A grande lição que se extrai desse histórico julgamento é clara e pedagógica. Ao proferir essa importantíssima decisão, o Supremo Tribunal Federal, fiel à sua missão institucional, demonstrou à Nação que ninguém, absolutamente ninguém, está acima da Constituição ou das leis da República.

Os ministros sublinharam que não há possibilidade de perdão judicial, anistia ou indulto a quem atenta contra o Estado democrático de Direito. O sr concorda?
O projeto de lei articulado pela oposição bolsonarista, destinado a conceder anistia aos golpistas que dessacralizaram os símbolos da República e do regime democrático, representa, em sua essência, um novo e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional.
Entendo que tal pretensão encontra obstáculo na própria Constituição da República, pois se mostra inviável a concessão de anistia – ou de perdão, graça ou indulto – a quem perverte as instituições com o objetivo de dar golpe de Estado ou de abolir, mediante violência ou grave ameaça, o Estado democrático de Direito.
Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta a soberana autoridade da Constituição da República.
O Congresso Nacional não pode exercer seu poder de legislar, em matéria de anistia, naquelas hipóteses pré-excluídas pela própria Constituição do âmbito normativo desse ato de clemência soberana do Estado (tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e delitos a estes equiparados); nos casos em que o Legislativo incidir em desvio de finalidade, distorcendo ou subvertendo a finalidade dessa modalidade do poder de graça, como ocorrerá se a concessão de anistia atribuir ao Parlamento a condição anômala (e inadmissível) de órgão revisor das decisões do STF, como parece revelar a intenção motivadora do projeto de lei perante a Câmara dos Deputados; e se a medida tiver por finalidade beneficiar qualquer pessoa que haja ofendido ou desrespeitado os cânones inerentes à democracia constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, em importante julgamento no qual se pronunciou sobre os limites do poder de graça (que não tem caráter absoluto), reconheceu, em diversos votos como os dos ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que o poder de clemência estatal sofre restrições explícitas e também aquelas de caráter implícito, como a intangibilidade do Estado democrático de Direito, firmando orientação no sentido de que atos concessivos do benefício da graça (indulto, graça em sentido estrito e anistia) são plenamente suscetíveis de controle jurisdicional, circunstância que legitima a atividade fiscalizadora do STF, a quem incumbe, por expressa delegação da Assembleia Constituinte, o “monopólio da última palavra” em matéria constitucional; de que o órgão competente para conceder o “favor principis” (o Congresso Nacional, no caso) não pode exercer tal prerrogativa institucional com desvio de finalidade; e de que a concessão da graça, como a anistia, não pode beneficiar quem houver atentado contra o Estado Democrático de Direito, regime político amparado por cláusula pétrea implícita.
No caso do projeto de lei em questão, entendo que tal proposição legislativa incide em algumas transgressões à Constituição, especialmente porque visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito, que representa limitação implícita ao poder de agraciar e porque, ao incidir em desvio de finalidade, busca converter o Congresso Nacional em anômalo órgão revisional (ou instância de superposição) em face das decisões do Supremo Tribunal Federal, ofendendo, assim, o postulado da separação de poderes.
Note-se, pois, que a proposição legislativa em tela ofende postulados constitucionais protegidos por cláusulas pétreas, tanto de natureza explícita quanto de caráter implícito.
Cabe destacar, portanto, a importância do reconhecimento das cláusulas pétreas de caráter implícito, que se destinam, tal como aquelas de natureza explícita, a resguardar a integridade dos princípios e valores que refletem o núcleo essencial de que emana a própria identidade do “corpus constitucional”, atribuindo, assim, à Constituição estabilidade e sentido de permanência e garantindo-lhe, também, entre outros meios de tutela, proteção contra retrocessos democráticos.
O magistério doutrinário formulado em torno das cláusulas pétreas implícitas – que derivam da própria natureza do regime jurídico e político adotado pela Assembleia Constituinte – tem por suporte a ideia de que a Constituição consubstancia um núcleo de valores e de princípios fundamentais que não podem ser modificados, mesmo mediante processo de reforma constitucional.
O STF, por essa razão, em face de sua posição institucional como guardião da Constituição da República, é o órgão também incumbido de salvaguardar as cláusulas pétreas explícitas e implícitas, nestas últimas incluídas a garantia e a proteção ao Estado democrático de Direito.
Profanadores da República e conspurcadores da democracia constitucional, como todos aqueles que se envolveram na organização, na coordenação , no planejamento, no financiamento e na execução dos atos criminosos a que se refere o projeto de lei mencionado, apoiado por lideranças políticas que buscam conceder-lhes anistia, não são dignos nem passíveis de merecer esse benefício da clemência soberana do Estado, porque a tanto se opõe a autoridade suprema da própria Constituição.

O ministro Luiz Fux ignorou provas? Na avaliação do sr, havia elementos suficientes para condenar os réus? A divergência pode ser usada juridicamente a favor dos condenados?
O ministro Fux é um magistrado probo, além de processualista e doutrinador eminente. Peço licença para não comentar, por razões éticas, qualquer voto dos ministros do STF, proferido em julgamento em curso.
O julgamento ocorreu em um contexto de enorme pressão do governo dos Estados Unidos. O STF, no entanto, não recuou diante dos ataques e sanções. O governo Trump agora faz novas ameaças. Como o tribunal deve agir diante deste assédio sem precedentes?
O processo histórico em torno das relações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos tem seu momento inicial, em 26 de maio de 1824, pelo ato de reconhecimento formal do Império do Brasil como Estado soberano e independente, praticado pelo governo americano, então sob a Presidência de James Monroe, de que John Quincy Adams era o seu secretário de Estado.
Na verdade, os Estados Unidos da América foram, no contexto da comunidade internacional, o primeiro Estado soberano a reconhecer a independência do Brasil, motivados por cálculos políticos e geoestratégicos, além de interesses econômicos e comerciais, com o duplo objetivo de reduzir (ou até mesmo neutralizar) a hegemonia britânica no Atlântico Sul e reafirmar os princípios fundados na Doutrina Monroe, assim impedindo qualquer possibilidade de intervenção militar e recolonizadora da Santa Aliança na América do Sul.
No curso desse processo, houve fases de intenso alinhamento político-diplomático entre o Brasil e os EUA, a começar da formulação da política externa brasileira pelo Barão do Rio Branco (1902-1912), posição seguida por seus sucessores imediatos no Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), como Lauro Müller (1912-1917), Nilo Peçanha (1917), Domício da Gama (1917-1918) e Félix Pacheco (1920-1921), a que se sucederam, em décadas posteriores, alguns momentos de tensão (ou pelo menos de fricção) em suas relações bilaterais, ainda que, de certo modo, a convivência entre ambos os países sempre se tenha pautado por vínculos amistosos.
Não é, porém, o que se verifica neste momento, no Brasil, por efeito de uma política externa controversa e atípica do governo Trump, caracterizada por especial ênfase no isolacionismo, no nacionalismo econômico, em negociações bilaterais e no personalismo egocêntrico e autoritário do seu Presidente, aspectos que permitem o reconhecimento, quanto a Trump, observadas as devidas diferenças, de certos “paralelos históricos, de perfil comparativo”, com as práticas governamentais de Andrew Jackson (1829-1837), William McKinley (1897–1901), Warren G. Harding (1921–1923), Calvin Coolidge (1923–1929) e Herbert Hoover (1929–1933).
Mesmo em relação ao Presidente Theodore Roosevelt (1901-1909), aquele do “Fale suavemente e carregue um grande porrete” (“Speak softly and carry a big stick”), há alguns paralelos em tema de política externa, ainda que sejam enormes as diferenças entre ambos os presidentes americanos (Trump e Theodore Roosevelt), como se vê, por exemplo, da grande preocupação de “Teddy” Roosevelt com a conservação do meio-ambiente e proteção e preservação das reservas naturais.
A ação do governo Trump contra o STF (vale dizer, contra o Brasil) não representa simples gesto diplomático, mas traduz afronta direta, irresponsável e inaceitável à soberania do nosso País e de suas instituições. A chamada revogação dos vistos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, praticada pelo governo Trump sob o falso pretexto de perseguição e censura, constitui ato de arbitrariedade desmedida , impregnado de um espírito de arrogância imperial, agora agravado pela absurda aplicação ao ministro Alexandre de Moraes, um magistrado íntegro, exemplar e probo, da Lei Magnitsky.
Trata-se de comportamento que não apenas atinge pessoas específicas, mas que, simbolicamente, busca deslegitimar o próprio Supremo Tribunal Federal, que é a “sentinela das liberdades” no Brasil, no dizer memorável do saudoso Aliomar Baleeiro.
Esse ato, mais do que uma ofensa pessoal aos ministros do STF, constitui uma agressão institucional ao Estado brasileiro e, por consequência, ao próprio povo de nosso País. É um insulto que fere a noção mesma de soberania nacional, porque significa que uma potência estrangeira, por meio de decisão arbitrária, pretende constranger e agredir um dos poderes da República, a Corte Suprema que encarna a guarda da Constituição. É preciso lembrar: nenhum Estado democrático pode tolerar que seus juízes sejam atacados em razão do exercício de suas funções, ainda mais quando isso ocorre sob justificativas mendazes e manipuladas, como nesse episódio.
Ao agir dessa forma, Trump demonstrou mais uma vez a sua postura de desprezo não apenas pelo direito internacional, mas também pelo princípio da convivência civilizada que estrutura as relações entre Estados soberanos. A conduta de Trump é reveladora de uma mentalidade marcada pelo autoritarismo e pela prepotência, que não reconhece limites éticos ou jurídicos quando se trata de impor, abusivamente, a sua vontade. Não é apenas uma afronta ao Brasil, mas uma afronta à ordem jurídica que deve reger a comunidade internacional, fundada – segundo a Carta das Nações Unidas (ONU) – na “igualdade soberana” dos Estados”, tese que foi brilhantemente exposta por Ruy Barbosa, em 1907, na Segunda Conferência Internacional da Paz, em Haia, na qual ainda sustentou, como fundamento legitimador da convivência harmoniosa entre as Nações, o repúdio à classificação dos Estados com base em critérios militares ou econômicos.
Portanto, é indispensável que o gesto do governo Trump seja lido não apenas como um ato hostil, mas como um perigoso precedente no contexto das relações internacionais. É que, se admitirmos que um governo estrangeiro possa retaliar juízes por decisões constitucionais, estaremos enfraquecendo a ideia mesma de independência judicial, que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
Que Trump saiba – e seja publicamente advertido – que a Corte Suprema do Brasil, atenta à sua alta responsabilidade institucional, não transigirá nem renunciará ao desempenho isento, impessoal e independente da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática, além de prestar incondicional reverência ao primado da Constituição brasileira , ao império das leis (“rule of law”) e à superioridade ético-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da República.
Ninguém desconhece, a não ser pessoas e governantes que agem motivados por pulsões autocráticas, que, sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres.
Na realidade, e como algumas vezes enfatizei em julgamentos no Supremo Tribunal Federal, inexiste na história das sociedades políticas qualquer registro de um povo que, despojado de um Poder Judiciário independente, tenha conseguido preservar os seus direitos e conservar a sua própria liberdade.
Sugiro, neste ponto, que Trump – que sequer possui a condição honrosa de estadista – leia “The Federalist Papers”, número 78, no qual Alexander Hamilton, um dos “Founding Fathers” dos EUA, escrevendo sob o pseudônimo de “Publius”, defendeu, em 28 de maio de 1788, a importância e a essencialidade de um judiciário independente e livre da ilegítima interferência dos poderes eleitos.
O gesto de Donald Trump de retaliar ministros do Supremo Tribunal Federal não interfere, nem poderá interferir, na jurisdição brasileira, que permanece soberana, independente e fundada na autoridade de nossa Constituição.
Qualquer tentativa de instrumentalizar esse gesto externo como forma de influenciar ou de enfraquecer o processo judicial em curso é vã e inútil.
Não se pode olvidar que o Supremo Tribunal Federal atua com base em provas, em princípios constitucionais e em garantias processuais idôneas que não podem ser afastados por pressões externas, muito menos por atos arbitrários de um governo estrangeiro irresponsável.
A independência da jurisdição é uma cláusula essencial da ordem democrática e constitucional brasileira, e é isso que confere plena legitimidade e inquestionável autoridade às decisões de nossa Suprema Corte.
Na verdade, o que se vê é a tentativa de reeditar, em pleno século XXI, expedientes autoritários já derrotados pela História.
A atuação de traidores brasileiros e o suposto poder de Trump de salvar Bolsonaro e seus corréus permitem afirmar, quanto a tais pretensões, que é a História repetindo-se como “farsa”, para relembrar a frase de Karl Marx, logo no primeiro parágrafo de seu conhecido trabalho “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” (1852).
Marx, em seu “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, inicia a sua obra, escrevendo, logo no primeiro parágrafo, a sua célebre frase.
“Hegel observa (…) que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (…)”.
Que essa advertência de Marx seja interpretada como um verdadeiro “caveat” pelos que traem o Brasil e querem interferir em nossos assuntos internos.
Eis, no caso, a farsa de um governante estrangeiro que, indiferente aos limites da Constituição e das leis de seu próprio país e das normas de direito internacional, pretende agir como um imperador acima da lei. E essa advertência também se aplica aos seus seguidores no Brasil, que imaginam poder se beneficiar dessa retórica enganosa, em típico delírio próprio de quem vive em um universo paralelo e em estado de completa disfunção cognitiva.
Se a intenção é minar a confiança na Justiça brasileira, trata-se de uma estratégia condenada a falhar, porque se apoia não na força do direito, mas no direito da força e na absoluta fragilidade da farsa.
De outro lado, há que se registrar que, ao longo da História, sempre que sociedades foram confrontadas por líderes autoritários, surgiram figuras sinistras que se curvaram à tirania e traíram seus próprios povos. E aqui cabe recordar a figura sinistra de Vidkun Quisling (1887-1945), que governou o Reino da Noruega durante sua ocupação pelo infame regime nazista, a que serviu com absoluto e vergonhoso servilismo na condição de “StatsMinister”. Seu nome tornou-se, desde então, sinônimo de traidor, pela conduta desleal e desonrosa com que vilipendiou sua pátria. Ao final da Segunda Guerra Mundial, com a derrota militar do Terceiro Reich, Quisling foi julgado, condenado e executado pelos patriotavs noruegueses — e sua memória passou à história como paradigma universal de traição.
Esse exemplo deplorável e indigno de traição à pátria foi vivido pelos próprios americanos, durante a denominada “Revolutionary War”, quando as 13 colônias britânicas na América se insurgiram contra o domínio do Reino Unido.
Refiro-me ao episódio que envolveu o americano Benedict Arnold (1741–1801), que, embora oficial militar do Exército Continental comandado por George Washington, conspirou contra seus conterrâneos em favor dos “Red Coats” (britânicos).
O nome de Benedict Arnold tornou-se sinônimo de traidor, a ponto de, até hoje, ser invocado, nos EUA, como grave insulto.
Efialtes de Malis, um grego da região da Tessália, é outro traidor que deve ser lembrado. Traiu o rei Leônidas e os seus 300, no conhecido episódio do desfiladeiro das Termópilas. Ele revelou aos persas um caminho secreto, um atalho na montanha, que permitiu ao exército de Xerxes flanquear os espartanos e massacrá-los. Hoje, na Grécia, o nome de Efialtes tem o significado de traidor e de covarde.
Esses exemplos históricos nos alertam para os riscos de figuras que, em momentos críticos, escolhem servir a interesses estrangeiros ou autoritários em vez de defender a soberania de sua própria nação.
Assim como a Noruega conviveu com o estigma de um Quisling e os EUA, com a nódoa de um Benedict Arnold, o Brasil, em sua trajetória, também conheceu — e infelizmente ainda conhece — atores políticos que, por servilismo ou oportunismo, traem a democracia e conspiram, em defesa de seus interesses pessoais, contra o seu próprio país.
Portanto, o paralelo histórico existe, e ele nos ensina uma clara lição: toda vez que se tenta fragilizar a independência de nossas instituições por meio de pressões externas ou internas, a democracia se vê gravemente ameaçada.
O fato inegável é que o Brasil, na presente quadra histórica, momento de extrema preocupação, assediado, de um lado, por um presidente americano que, além de ser indiferente aos grandes princípios que regem as relações internacionais, como os do respeito à soberania e da não interferência em assuntos internos de outro país (consagrados em 1648 pelos tratados de Westfália), vem praticando, atrevidamente, contra o nosso País, atos arbitrários e de prepotência imperial.
De outro lado , cabe reconhecer – e denunciar – o comportamento ultrajante de brasileiros, notadamente de conhecidas figuras públicas, em atuação no exterior ou mesmo entre nós, que vergonhosa e servilmente se curvam a um poder estrangeiro, agindo como desprezíveis traidores da Pátria, em detrimento dos superiores interesses nacionais, mediante ações lesivas que comprometem, gravemente, os símbolos majestosos da República e da democracia constitucional, na tentativa infame de transgredir as bases luminosas do Estado Democrático de Direito.
Levantar-se em proteção da soberania do Brasil representa, neste delicado momento histórico vivido por nosso País, um dever cívico e político dos brasileiros, de todos os brasileiros, pois a defesa da intangibilidade da soberania nacional constitui encargo irrenunciável por cuja observância devemos todos nos comprometer incondicionalmente.
O reconhecimento da plena capacidade do Brasil de governar-se a si mesmo, com fundamento em sua própria Constituição, sem qualquer mínima possibilidade de interferência externa, notadamente por potestades estrangeiras, tem sido ideal perseguido – e pelo qual a nacionalidade brasileira sempre se empenhou em manter – em momentos seminais da formação e consolidação de nosso País como Estado soberano.
Quem concorda com essas ações tão profundamente lesivas e prejudiciais ao nosso País, à classe trabalhadora e às empresas exportadoras brasileiras, praticadas e estimuladas por esses “traidores da Pátria”, com o auxílio explícito (e transgressor do Direito Internacional) de um governo estrangeiro, apoia, sem razão e sem justa causa alguma, a conduta servil, desleal e desonrosa contra o Brasil.
Trair a Pátria constitui um dos atos mais indignos, infamantes e vergonhosos que um brasileiro pode cometer contra a sua própria nacionalidade.