A cláusula de morte que o policial jamais assinou
A função policial é, por essência, altamente complexa. Exige eficiência, bem como coragem de quem se dispõe a enfrentar diariamente as situações mais críticas da sociedade. No entanto, o que deveria ser reconhecido como um serviço público essencial vem sendo tratado, de forma silenciosa, como se fosse uma atividade com uma cláusula implícita de morte.
É como se, ao escolher a carreira, o policial aceitasse previamente uma margem “tolerável” de letalidade, o que não pode ser naturalizado.
A condição de ser policial carrega um binômio difícil: ao combater o crime, ele também se expõe como uma de suas primeiras vítimas. Tal risco não se limita ao período em serviço, mas se estende às horas de folga, afinal, o agente da lei é considerado policial em tempo integral. A legislação lhe impõe o dever de agir ao se deparar com ilícitos, enquanto a sociedade deposita nele a expectativa de disponibilidade absoluta.
Essa exigência de dedicação permanente contrasta com a ausência de um marco normativo que ofereça proteção diferenciada.
Embora os crimes contra policiais se encaixem em tipos penais genéricos — homicídios, latrocínios, atentados —, as circunstâncias e motivações que envolvem tais ocorrências raramente recebem tratamento jurídico específico. O resultado é a perpetuação de um paradoxo: exige-se que o policial esteja sempre pronto a intervir, mas não se garante a ele o mínimo de proteção compatível com essa exposição.
Na criminalidade brasileira, cada vez mais violenta e estratégica, o policial se transforma em alvo qualificado. Não se trata apenas de risco colateral. Muitos ataques são premeditados, como retaliação à sua função. O espaço de trabalho do policial — a rua, a comunidade, o cotidiano social — confunde-se com o espaço em que ele próprio é vitimado. Uma realidade que agrava a sensação de vulnerabilidade e expõe a falha estrutural de um Estado que cobra presença, mas não assegura condições de sobrevivência a seus agentes.
Preservar a vida dos profissionais de segurança pública não é um favor, mas um dever do Estado. Isso exige medidas preventivas, protocolos claros e, sobretudo, legislação específica que reconheça a singularidade da carreira policial e seus riscos. Não se pode aceitar que a morte de policiais seja tratada como mero efeito colateral de sua atuação, como se fizesse parte de um contrato tácito assumido ao vestir a farda ou portar uma insígnia.
Antes de ser policial, ele é cidadão. Filho, filha, pai ou mãe. Servidor que atua em nome da coletividade, mas que não pode ser reduzido à condição de número em estatísticas de violência. Reconhecer sua vulnerabilidade e assegurar-lhe proteção efetiva é reafirmar que, em um Estado Democrático de Direito, a defesa da vida deve ser princípio inegociável — inclusive, e sobretudo, a vida daqueles que a dedicam diariamente a proteger a sociedade.