As torres de vidro não estão acima da lei
Durante muitos anos, Dubai foi sinônimo de glamour e de luxo, mas também de impunidade. O emirado, um dos centros financeiros mais dinâmicos do Oriente Médio, tornou-se conhecido como refúgio de criminosos internacionais, sobretudo ligados ao narcotráfico europeu. A explicação era simples: inexistiam tratados de extradição formais entre os Emirados Árabes Unidos (EAU) e a maior parte dos países da Europa.
Essa ausência de cooperação judicial permitia que indivíduos procurados pela Interpol, mesmo sob Avisos Vermelhos, circulassem livremente, fossem detidos e libertados ou até deportados para países de conveniência, mas não entregues ao Estado que efetivamente os buscava para responder a processo penal. Criava-se, assim, uma espécie de “porto seguro” para traficantes, fraudadores e corruptos de alta escala, que podiam ostentar patrimônio em Dubai sem temer perseguição penal.
Nos últimos anos, contudo, esse quadro mudou radicalmente. Os Emirados Árabes Unidos passaram a adotar uma política de estreitamento da cooperação internacional em matéria penal, tanto para atender a pressões políticas e econômicas de parceiros ocidentais, como também para reverter a imagem negativa de centro de lavagem de dinheiro e de blindagem a fugitivos.
Um funcionário do governo emiradense, no fim de 2024, sintetizou esse novo espírito: “Os Emirados Árabes Unidos estão comprometidos em trabalhar com todos os seus parceiros internacionais para interromper e impedir todas as formas de financiamento ilícito global”. A retórica, nesse caso, veio acompanhada de resultados concretos.
Importante destacar que os Emirados Árabes Unidos concluíram, desde 2021, uma série de tratados de extradição que transformaram a paisagem jurídica:
- Irlanda: após mais de uma década de negociações, em maio de 2025 entrou em vigor o primeiro tratado de extradição entre Dublin e Abu Dhabi. Pouco antes, inclusive, já havia ocorrido uma transferência ad hoc de réu procurado.
- Bélgica: em 2021, foi assinado tratado bilateral. Em julho de 2025, ocorreu a extradição de um belga-marroquino envolvido em redes de drogas, marco saudado como avanço.
- Holanda: desde agosto de 2023, está em vigor tratado de extradição e assistência jurídica mútua. Em julho de 2024, um cidadão holandês foi extraditado por acusações de tráfico e homicídio.
- Itália: os dois países já tinham acordo, mas houve reforço na aplicação. Casos em 2022 e 2024 confirmaram a entrega de italianos por fraude e crimes patrimoniais.
- Dinamarca: o tratado de 2022 permitiu, em 2023, a extradição de um cidadão britânico para Copenhague em caso de fraude fiscal de grandes proporções.
- Alemanha: ainda não há tratado formal, mas tribunais emiradenses já autorizaram pedidos alemães, sinalizando que a primeira entrega é apenas questão de tempo.
- França, Reino Unido, Espanha e outros: embora alguns tratados, como o Reino Unido-Emirados (em vigor desde 2008), fossem pouco utilizados, a nova postura de Dubai tem lhes dado aplicabilidade.
Esse mosaico de acordos cobre praticamente toda a Europa Ocidental. Na prática, significa que nenhum fugitivo europeu pode presumir-se imune ao alcance da justiça em Dubai.
A reflexão a ser feita é que se, no passado, a extradição era uma ficção nos Emirados Árabes Unidos, hoje já há casos concretos. Nos últimos dois anos, diversas figuras ligadas ao crime organizado foram presas e entregues. A análise dos pedidos demonstra um padrão: quando há documentação robusta, identidade confirmada e respeito ao requisito da dupla tipicidade (crime reconhecido em ambos os países), os tribunais locais deferem a entrega.
A Lei Federal de Extradição de 2006 regula o procedimento, garantindo formalidade judicial mínima, mas sem reabrir a discussão sobre mérito criminal. A extradição é, assim, ato de cooperação e não de julgamento de culpabilidade.
Esse novo cenário traz consequências profundas. Para os acusados, desaparece a ideia de que Dubai é território imune. Quem reside ou viaja aos Emirados Árabes Unidos enquanto tem mandados europeus pendentes corre risco real de prisão e entrega.
Os Avisos Vermelhos da Interpol, embora não constituam ordem de prisão automática, passaram a ter eficácia prática, funcionando como gatilho para detenções preventivas e processamento do pedido de extradição.
Do ponto de vista da defesa, a estratégia deve ser proativa e especializada. Não há espaço para manobras dilatórias prolongadas, já que os tribunais emiradenses têm dado respostas céleres. A linha de atuação passa por questionar a natureza política da acusação, apontar risco de perseguição ou de violação de direitos humanos no Estado requerente e negociar soluções alternativas, como retorno voluntário.
É essencial a atuação de profissionais com experiência simultânea nos sistemas jurídicos europeu e árabe, aptos a identificar margens de manobra entre a lei doméstica dos Emirados e os compromissos internacionais firmados.
O que antes parecia um “sonho dourado” para traficantes e fraudadores – o refúgio intocável em Dubai – tornou-se um risco calculado. Hoje, nenhum lugar está fora do radar da cooperação penal internacional.
A transformação da política de extradição dos Emirados Árabes Unidos, de quase inexistente para ativa, é reflexo do mundo interdependente: o combate ao crime organizado exige redes de tratados, pressão diplomática e integração judicial.
Para o Brasil, que também convive com fugitivos internacionais e tem interesse em repatriar réus e condenados, fica a lição. A extradição não é apenas ato jurídico: é instrumento de política externa, de credibilidade financeira e de afirmação do Estado de Direito no cenário global.
Dubai, outrora “porto seguro”, hoje envia um recado claro: nem mesmo suas torres de vidro estão acima da lei.