Narcocídio: entre a inconstitucionalidade e a impunidade
Avança no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.786/2021, que prevê a criação do crime denominado Narcocídio. Em síntese, pretende-se retirar do Tribunal do Júri o julgamento dos homicídios praticados em contexto de tráfico de drogas. A justificativa seria a maior eficiência do juiz togado diante da violência das facções criminosas. No entanto, o que parece solução prática é, além de inconstitucional, um retrocesso perigoso na democracia brasileira.
A Constituição de 1988 consagrou, como cláusula pétrea, a soberania do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, alínea “d”). É, portanto, reserva material de competência constitucional, firmada como meio de garantir a participação direta do povo nas decisões do Estado. Retirar os homicídios vinculados ao tráfico de drogas da competência do Júri é violar esse pacto, burlando um direito fundamental que não pode ser alterado nem mesmo por emenda constitucional.
Mais do que a flagrante inconstitucionalidade, a proposta ignora a eficiência comprovada do Júri. Argumenta-se que o Júri seria vulnerável ou incapaz de julgar crimes praticados por facções. Todavia, a realidade desmente tal premissa.
O sistema do Júri é normativamente blindado contra possíveis pressões externas: cada julgamento envolve a participação de, pelo menos, 25 cidadãos sorteados, dos quais 7 compõem o Conselho de Sentença, após três recusas imotivadas possíveis de acusação e defesa. O voto é secreto, tomado por maioria, sem possibilidade de identificar o posicionamento individual de cada jurado e até mesmo se a decisão foi ou não unânime. Diferente do juiz singular, que decide sozinho, o Júri pulveriza qualquer tentativa de coação, tornando praticamente inviável a intimidação. Qual facção criminosa teria o poder de corromper esse mosaico humano, múltiplo e anônimo? Nenhuma. O risco de coação é infinitamente maior quando a decisão recai sobre um único juiz.
E se risco concreto houver em determinada comarca decorrente das especiais condições pessoais dos réus de processo que ali tramita, o próprio Código de Processo Penal já confere o instrumento do desaforamento, a permitir que determinado julgamento seja realizado em outro local, longe das pressões externas que possam eventualmente recair sobre esse caso específico.
No aspecto decisório, o Júri se mostra ainda mais eficiente. Enquanto ao magistrado togado impõe-se o dever de fundamentar por escrito sua decisão, indicando expressamente as provas que o convenceram e restringindo-se àquelas produzidas ou confirmadas em juízo — circunstância que obsta condenações baseadas exclusivamente em elementos colhidos na fase investigativa, os jurados, decidem guiados pela íntima convicção, em deliberação sigilosa, sem a necessidade de justificar as razões que os conduziram ao veredicto.. Isso significa que podem reconhecer o medo que silencia testemunhas, intuir a verdade por detrás de depoimentos contraditórios, valorar todo o conjunto probatório e chegar à condenação justa.
Além disso, desde 2024, o Supremo Tribunal Federal fixou no Tema 1068 que as condenações do Júri têm execução imediata, o que significa que a prisão do acusado que respondia em liberdade ao processo será cumprida imediatamente após sua condenação, não se exigindo o trânsito em julgado da sentença condenatória, como no caso de crimes julgados pelos juízes togados. Assim, ao contrário do que se alega, o Júri combina legitimidade democrática com resposta penal rápida e eficiente.
Para mais do que fundamentos teóricos, há dados empíricos a ratificar a eficiência dos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Estudo conduzido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, sobre 4.043 processos de homicídio julgados no Tribunal do Júri paulista entre 2000 e 2025, revelou que, nos casos com vínculo ao tráfico, 82,6% resultaram em condenação. O índice é maior do que o observado em homicídios sem essa relação (77,1%). Em outras palavras: longe de ser espaço de impunidade, o Júri tem se mostrado ainda mais rigoroso nos chamados “narcocídios”.
Ignorar esses números e aprovar o projeto significará abrir um precedente perigoso: a mutilação de uma cláusula pétrea. Hoje se retira do Júri os homicídios ligados ao tráfico. Amanhã, por que não os homicídios relacionados aos jogos de azar? Depois, os homicídios relacionados às milícias ou às máfias de contratos de prestação de serviços públicos? Enfim, bastará criar tipos penais paralelos, com o subterfúgio de “se da violência resulta morte”, para se esvaziar progressivamente por leis infraconstitucionais a competência constitucional do Júri. Ou seja, caminho de erosão institucional que ameaça reduzir a instituição a mero adorno retórico, enfraquecendo a soberania popular, fundamento basilar de um Estado Democrático de Direito.
O combate ao tráfico exige reformas sérias e corajosas: inteligência policial, estrangulamento das cadeias financeiras, atuação integrada de agências estatais e políticas consistentes de prevenção. É possível, sim, canalizar a preocupação do legislador em conferir maior eficiência ao combate às organizações criminosas para soluções realmente eficazes e constitucionais. O caminho não é mutilar a competência do Júri, mas aprimorar a legislação penal pelo próprio projeto de lei: elevar penas nos homicídios praticados por facções; criar o tipo penal de crimes cometidos em contexto de domínio territorial do tráfico, ajustar o Código Penal, a Lei de Drogas e a Lei de Execuções Penais, de modo a fortalecer seus instrumentos com maior rigor penal.
Em vez de seguir a rota tortuosa do “narcocídio”, que leva ao esvaziamento democrático e à impunidade, o Parlamento pode mudar o rumo de suas velas e aproveitar os ventos certos, fortalecendo o Estado de Direito e não o crime organizado.
No entanto, o projeto de Lei do Narcocídio, como posto, não é, portanto, apenas uma lei ruim. É a institucionalização da exceção. É o Estado a admitir que não confia no seu povo para julgar a vida e a morte, e preferir retirar a voz coletiva da sociedade justamente diante do crime que mais a aterroriza, a conferir anistia velada aos homicídios praticados por facções criminosas.
O Ministério Público, instituição incumbida da defesa do regime democrático (art.127 da Constituição Federal), não pode nem ficará silente diante deste projeto de lei, cuja aprovação do referido projeto de lei não será lembrada como modernização do combate a um dos maiores maus dos dias atuais, mas como uma das maiores capitulações do Estado brasileiro diante do narcotráfico: a lei que traiu a Constituição, retirou o poder do povo, e trocou a soberania do Júri pela perpetuação da impunidade.