Juiz vê ‘pacto corrupto’ e condena elo do PCC para fraudes a 32 anos de prisão e ex-vereador a 28
A Justiça de Arujá, a 40 quilômetros de São Paulo, condenou o ex-presidente da Câmara da cidade com 90 mil habitantes Gabriel dos Santos (PSD) a 28 anos, sete meses e 18 dias de prisão por corrupção e fraude a licitações em suposto conluio com Vagner Borges Latrell Dias, o ‘pagodeiro do PCC’, que pegou 32 anos, dez meses e quatro dias de pena.
Na sentença de cem páginas, o juiz Guilherme Lopes Alves Pereira, da 1.ª Vara, destacou que ‘Latrell’ – que já está preso por outra condenação – ‘coordena lances para eliminar concorrentes, ordena pagamentos de propina e utiliza sua conexão com a facção criminosa para intimidar e resolver disputas’.
Gabriel renunciou ao mandato em maio de 2024.
A denúncia do Ministério Público descreveu uma ‘organização criminosa estruturada, com divisão clara de tarefas, voltada para a prática de crimes contra a administração pública’.
A Promotoria apontou fraudes em contratos, corrupção e fraude à licitação. “Entre 18 de outubro de 2020 e 18 de outubro de 2021, um esquema criminoso operou na Câmara Municipal de Arujá”, destaca o juiz.
Em outubro de 2020, Gabriel dos Santos, então presidente do Legislativo, e o servidor Jesus Cristian Ermendel dos Reis autorizaram a ‘prorrogação indevida’ de um contrato administrativo.
A atuação de Cristian ‘foi fundamental para dar aparência de legalidade às fraudes’, diz o magistrado. “Como chefe de compras e gestor do contrato, tinha o dever de zelar pela lisura dos procedimentos.”
“As provas demonstram que Jesus Cristian recebeu orçamentos sabidamente forjados, solicitou correções para adequá-los formalmente e, ciente da farsa, atestou a fictícia vantajosidade das prorrogações”, destaca a sentença.
Jesus Cristian foi o executor direto da fraude interna, afirma a Promotoria. “Ele solicitou os orçamentos a Vagner ‘Latrell’, tinha ciência de sua falsidade e, ainda assim, atestou a fictícia vantajosidade para a administração, instruindo os processos para dar-lhes aparência de legalidade.”
Vagner Latrell e seu cúmplice Antônio Carlos de Morais participaram simulando vantagens e fraudando documentos, ressalta a sentença.
O mesmo procedimento foi repetido um ano depois, em outubro de 2021, envolvendo os mesmos personagens. Para garantir a continuidade dos negócios, entre outubro e novembro de 2020, segue a sentença, Vagner Latrell, Morais, Wellington Costa, Leanine Andrade Reis e Wagner Sandim da Silva (falecido) ‘ofereceram vantagens indevidas a Gabriel dos Santos’.
Em contrapartida, o então vereador solicitou e recebeu pagamentos que somaram R$ 20 mil em propinas.
Posteriormente, entre outubro e setembro de 2021, o grupo liderado pelo ‘pagodeiro do PCC’, em parceria com Gabriel dos Santos, frustrou o caráter competitivo de um pregão presencial da Câmara, visando obter a adjudicação do objeto licitado.
“A negativa de autoria apresentada pelo réu Gabriel contradiz o acervo probatório. Na qualidade de presidente da Câmara e ordenador de despesas, sua participação foi essencial para o sucesso da empreitada criminosa. Gabriel não apenas autorizou as prorrogações ilegais, como também determinou o início do novo pregão já direcionado”, pontua a sentença.
Para o magistrado, conversas de WhatsApp entre Gabriel e Vagner ‘revelam uma relação de cumplicidade que transcende o trato institucional’.
“O pedido de Vagner para que Gabriel ‘salvasse’ suas notas fiscais e a combinação para o envio do ‘menino’ no mesmo dia da prorrogação do contrato são indícios claros do pacto corrupto. A conduta de Gabriel dos Santos configura corrupção passiva qualificada, fraude em contrato e fraude à licitação”, escreveu o juiz Guilherme Lopes Alves Pereira.

O magistrado é taxativo. “Os líderes do esquema, Vagner e Antônio Carlos, foram os arquitetos das fraudes. As conversas interceptadas os flagram orquestrando a fabricação de orçamentos falsos, coordenando a atuação de suas empresas de fachada no pregão e planejando os pagamentos de propina.”
“As conversas demonstram que Vagner, ao ser comunicado sobre a necessidade de justificar as prorrogações contratuais, acionava Antônio para produzir orçamentos fraudulentos”, diz a sentença. Utilizando empresas do ‘Grupo Safe’ (controlado pelo pagodeiro do PCC) ou ‘parceiras’, eles simulavam uma pesquisa de mercado fabricando propostas com valores artificialmente elevados para que a empresa de Vagner parecesse mais vantajosa.
Na fraude ao Pregão n.º 02/2021, ‘ambos coordenaram a participação de três de suas empresas e os lances durante o certame, como evidenciado nas mensagens do grupo ‘Licitação Safe’, frustrando o caráter competitivo do processo, pontua a investigação.
Defesa: ‘atos formais’
A defesa do ex-presidente da Câmara alegou que ‘sua atuação se limitou a atos formais de homologação, sem interferência no mérito dos certames e que não há prova do recebimento de vantagem indevida’.
“Este argumento é refutado pelas provas dos autos”, anota o juiz. “As conversas de WhatsApp com Vagner demonstram uma relação promíscua e indicam claramente um pacto corrupto.”
‘O menino vai te procurar aí’
Para o magistrado, a expressão ‘o menino vai te procurar aí’, utilizada por Vagner no exato dia da assinatura de um dos aditamentos fraudulentos, seguida da efetiva ordem de pagamento de R$ 10 mil, não pode ser interpretada como mera coincidência. “A tese de que os valores seriam provenientes de ‘apostas de golfe’ carece de lastro probatório e se revela uma tentativa frágil de justificar o recebimento de propina”, adverte Guilherme Lopes.
Para o juiz, ‘a conduta de Gabriel foi um ato de ofício praticado com infração de dever funcional, em troca de vantagem ilícita, configurando corrupção passiva qualificada’.
O juiz decretou novo mandado de prisão para Vagner ‘Latrell’ . “Sua periculosidade concreta e o risco que sua liberdade representa para a ordem pública extrapolam o ordinário, exigindo a medida mais gravosa. A fundamentação para tanto assenta-se em dois pilares inabaláveis, fartamente comprovados nos autos: seu papel de comando no esquema e, principalmente, sua comprovada e ativa vinculação com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).”
Segundo concluiu o juiz, Vagner ‘não era um mero integrante do esquema; era o líder, o arquiteto e o principal beneficiário das fraudes’.
“A pena que lhe foi imposta, a mais elevada entre todos os réus, reflete essa centralidade. Contudo, o que o distingue de forma definitiva é a maneira como ele mescla suas atividades empresariais ilícitas com o poder paralelo e a capacidade de intimidação da facção”, alerta o magistrado.
As interceptações telefônicas e telemáticas ‘não deixam margem a dúvidas’.

“Vagner não apenas se associou, mas integra e exerce papel de liderança no PCC. Ele aciona a ‘Disciplina’ da facção para resolver disputas, recorre ao ‘tribunal do crime’ para mediar cobranças de contratos, mobiliza membros do grupo para ‘julgar’”, segue a sentença.
No processo, a defesa do ‘pagodeiro do PCC’ negou a prática dos crimes a ele atribuídos. Afirma que ele é um empresário que buscava competitividade e que suas conversas foram mal interpretadas. “Sua negativa é frontalmente conflitante com o teor das provas”, rebate o juiz. “Os áudios e mensagens revelam um líder criminoso que comanda a fabricação de propostas, coordena lances para eliminar concorrentes, ordena pagamentos de propina e utiliza sua conexão com a facção criminosa para intimidar e resolver disputas, punir desafetos e se gaba de sua posição ao afirmar que ‘sempre fui comando’ e de sua ligação com o ‘Quadro dos 14’, um alto conselho da organização.”
“Essa conduta social, altamente reprovável, revela um indivíduo que não apenas desrespeita o Estado, mas que ativamente se vale de uma estrutura criminosa violenta para impor sua vontade e proteger seus interesses”, acrescenta o juiz.
Para ele, ‘a liberdade de um agente com tal perfil, agora ciente de uma condenação que o manterá décadas encarcerado, representa um risco iminente e concreto’.
“A probabilidade de fuga é altíssima, e sua capacidade de coação e de continuar a delinquir, utilizando-se da mesma rede de contatos no crime organizado, é evidente. Nenhuma medida cautelar diversa da prisão seria capaz de neutralizar esse risco. As circunstâncias fáticas demonstram ser o réu um enorme perigo para a sociedade.”
Guilherme Lopes Alves Pereira aponta o fato de que ‘o crime perpetrado em uma cidade pequena do interior assume uma gravidade acentuada, pois não apenas ameaça a integridade física e psicológica das vítimas, mas também abala a sensação de insegurança na comunidade local’.
“Em ambientes urbanos mais restritos, tais delitos têm um impacto mais imediato, gerando apreensão e desconfiança entre os moradores. A prisão preventiva do réu se mostra necessária não apenas para resguardar a ordem pública, desencorajando a prática delitiva, mas também para assegurar que o processo transcorra de maneira justa e que a comunidade possa retomar seu cotidiano com maior tranquilidade”, segue a sentença.
“O crime pelo qual o réu foi condenado é de extrema gravidade”, reforça Guilherme .“Crimes como este demonstram uma falta de respeito pela lei e pela ordem social, e a prisão preventiva é necessária para proteger a comunidade contra danos adicionais. A gravidade concreta da conduta respalda a prisão preventiva, porquanto revela a periculosidade social do agente. As circunstâncias fáticas demonstram a gravidade concreta do crime.”
A sentença vai além. “A conduta social do réu é altamente reprovável. O envolvimento do réu com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) evidencia um profundo desajuste e desrespeito à ordem social e legal, extrapolando o mero cometimento do crime em tela.”
Ainda sobre a conduta do ex-vereador, o juiz asseverou. “A culpabilidade do réu é gravíssima. Como presidente da Casa, era seu dever primordial zelar pela legalidade e moralidade dos atos administrativos. Ao invés disso, utilizou seu poder para dar o aval final a prorrogações contratuais que sabia serem fraudulentas.”
“As circunstâncias do crime também são desfavoráveis, pois a fraude foi perpetrada de maneira sofisticada, envolvendo a cooptação de múltiplos agentes e a utilização de um complexo aparato empresarial para dar aparência de legalidade aos atos.”
Guilherme Lopes considera que ‘as consequências do crime são graves, pois o prejuízo foi causado à Câmara Municipal de Arujá, cidade de menor porte, onde o impacto de desvios, ainda que não milionários, compromete de forma mais sensível o orçamento destinado aos serviços públicos’.
“Estas circunstâncias, em sua intensidade e impacto no caso concreto, extrapolam os elementos típicos considerados pelo legislador na cominação abstrata e os próprios limites do tipo penal, demonstrando maior reprovabilidade da conduta do agente e demandando resposta sancionatória mais rigorosa e contundente, o que justifica a elevação da pena em 1/3 (um terço)”, diz o texto.
“Tal patamar é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, conferindo à pena o caráter de individualização que a Constituição da República exige.”