A música como alavanca de transformação
O noticiário, em geral, tem estado carregado de um tom negativo e melancólico. Guerras, criminalidade, violência urbana, política antiética ou amoral, crise econômica, muita crispação e ausência de diálogo. O mundo está complicado. É um fato.
No entanto, existem muitas coisas boas acontecendo. Generosidade concreta. Heroísmo anônimo. Iniciativas que desaparecem no caudal de uma informação que privilegia o avesso da natureza humana.
Nesta coluna, amigo leitor, nadarei contra a corrente. Darei nome e rosto a uma iniciativa fantástica: a Orquestra Criança Cidadã. Trata-se de uma história real de inclusão social pela música, que já transformou centenas de vidas e segue sendo um farol de esperança em tempos sombrios.
A Orquestra Criança Cidadã nasceu em 2006, no Recife, idealizada pelo juiz de Direito João José Rocha Targino, em parceria com o maestro Cussy de Almeida (1936–2010) e com o desembargador Nildo Nery dos Santos (1934–2018). A ideia era simples e poderosa: usar a música como ferramenta para mudar destinos e resgatar crianças e adolescentes de realidades marcadas por vulnerabilidade, pobreza e falta de oportunidades.
De lá para cá, o projeto se consolidou como uma referência de sucesso. Completou, em julho de 2025, 19 anos de existência, atendendo a mais de 450 jovens, com idades entre 7 e 21 anos, das comunidades do Coque (no Recife), do distrito de Camela (em Ipojuca) e da zona rural de Igarassu. Ao todo, mais de 700 alunos já passaram pelo programa. A iniciativa realiza apresentações nacionais e internacionais e, desde 2013, ao menos uma vez por ano, seus músicos se apresentam no exterior.
A estrutura oferecida vai muito além do ensino musical. Os alunos, sempre no contraturno escolar, têm aulas de instrumentos de cordas, sopros e percussão, teoria musical, flauta doce e canto coral. Recebem alimentação, uniforme, atendimento médico e odontológico, apoio pedagógico e aulas de inclusão digital. É uma experiência completa de desenvolvimento humano e social.
Mas o verdadeiro sucesso da Orquestra pode ser medido pelo rosto humano da transformação. E aqui ganha destaque o exemplo inspirador de Antonino Tertuliano.
Antonino, hoje com 32 anos, é um símbolo vivo de que a música salva. Nascido e criado no Coque, uma das comunidades com pior Índice de Desenvolvimento Urbano do Recife, viu na Orquestra a chance de escapar de um futuro previsível: o da exclusão. O menino pobre, filho de um ambiente marcado pela ausência de perspectivas, começou tocando contrabaixo acústico na periferia do Recife. Mas logo se destacou – pelo talento, claro, mas principalmente pela disciplina, determinação e coragem de sonhar grande.
A partir daí, sua trajetória foi marcada por conquistas admiráveis. Estudou na Universidade Federal de Pernambuco, passou pelo Conservatório Pernambucano de Música e integrou a Orquestra Sinfônica de Goiânia. Mas foi em Israel, ao conseguir uma bolsa integral na prestigiada The Buchmann-Mehta School of Music, que Antonino viveu um divisor de águas. Em 2019, teve a honra de participar do concerto histórico de despedida do maestro Zubin Mehta, após 50 anos à frente da Filarmônica de Israel.
Foi o início de um novo capítulo. Em 2021, após seis audições, Antonino foi aprovado para integrar oficialmente a mesma Filarmônica. Uma conquista extraordinária, fruto de mérito, resiliência e oportunidades bem aproveitadas – e que ecoa como exemplo para cada criança da Orquestra Criança Cidadã: é possível vencer.
Hoje, Antonino vive em Salzburgo, na Áustria, onde integra a Niederbayerische Philharmonie Orchester e cursa mestrado na Mozarteum University Salzburg, uma das instituições de música mais respeitadas do mundo.
A história de Antonino não é só sobre música. É sobre fé nas pessoas, sobre o poder de uma sociedade que investe em seus talentos – mesmo aqueles escondidos nas vielas e favelas do Brasil. É um grito silencioso contra o preconceito, o conformismo e o ceticismo corrosivo que tantos insistem em disseminar.
Num país em que tantas manchetes giram em torno da corrupção, da impunidade e do colapso ético, exemplos como este precisam ser celebrados. São uma lufada de esperança. Uma lembrança de que existem caminhos diferentes, mais luminosos e promissores, quando se dá a chance certa na hora certa.
A Orquestra Criança Cidadã não distribui caridade. Oferece educação, disciplina, cultura e autoestima. Forma músicos, mas, acima de tudo, forma cidadãos. E o faz apostando na meritocracia e no potencial transformador das oportunidades. É uma escola de valores, de superação e de dignidade.
É urgente valorizarmos esse tipo de iniciativa. São elas que verdadeiramente constroem o Brasil que queremos: ético, plural, inclusivo e, sobretudo, humano. Precisamos acreditar mais nas pessoas. Apostar nos jovens. Incentivar os talentos. Romper com o pessimismo crônico que paralisa e impede o progresso.
Cada nota que este jovem, saído da periferia, toca carrega a mensagem de que é possível sonhar. E realizar.
Que a sua trajetória inspire novos projetos, novas orquestras, novos Antoninos.