Escravos no século 21
O trabalho análogo à escravidão permanece como uma das mais graves violações aos direitos humanos no Brasil contemporâneo. Prática que remonta à lógica colonial, essa forma de exploração afeta anualmente milhares de pessoas, em setores tão diversos quanto o agronegócio, a construção civil e o trabalho doméstico. Ainda que exista um sólido arcabouço normativo e institucional a combatê-la, os relatos recentes –como o resgate de trabalhadores submetidos a condições degradantes, noticiado em agosto de 2025– demonstram que essa conduta criminosa continua ativa, exigindo das autoridades resposta firme e articulada.
Os dados confirmam esse cenário. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em 2024 foram iniciados 5.276 novos processos sobre tráfico de pessoas e trabalho escravo, e havia 6.798 casos pendentes ao final do ano –um recorde desde o início do levantamento em 2020. Desde 1995, mais de 65 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão, número que evidencia tanto a dimensão do problema quanto a necessidade de ações para enfrentá-lo.
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de instrumentos robustos para combater tais violações. A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso III, proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante. O artigo 7º assegura diversos direitos trabalhistas fundamentais, entre eles o salário mínimo, o repouso semanal remunerado, a jornada de trabalho limitada, a proteção da saúde e da segurança no trabalho.
Do ponto de vista penal, o artigo 149 do Código Penal, reformulado pela Lei nº 10.803/2003, tipifica como crime submeter alguém a condições análogas às de escravo, abrangendo trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes e servidão por dívida. A pena prevista é de dois a oito anos de reclusão, além de multa, podendo ser aumentada em metade quando o crime for cometido contra criança ou adolescente, ou motivado por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Além disso, mecanismos administrativos como a “Lista Suja do Trabalho Escravo” e as operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel têm desempenhado papel significativo ao impor restrições financeiras a empregadores infratores e resgatar trabalhadores em áreas remotas.
Um exemplo concreto da importância crescente do tema no cenário institucional é o 2º Encontro Nacional do Fórum Nacional do Poder Judiciário para o Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas, promovido pelo CNJ em São Luís, Maranhão, no final de julho. O evento reuniu ministros, juízes, procuradores, servidores públicos, pesquisadores, lideranças de comunidades tradicionais e movimentos sociais para discutir os desafios e estratégias no enfrentamento dessas práticas.
Ao fim do encontro, foi divulgada a Carta de São Luís, que estabelece diretrizes estratégicas para a atuação judicial e judiciária. Entre as prioridades, destacam-se protocolos para proteção das vítimas, ações contra o trabalho doméstico escravo, regulação das cadeias produtivas, combate ao garimpo ilegal, prevenção da revitimização e promoção do controle de convencionalidade conforme normas internacionais de direitos humanos.
Esse tipo de mobilização demonstra que o enfrentamento ao trabalho escravo tem, felizmente, ganhado relevo cada vez maior dentro das instituições, não apenas como tema esporádico, mas como política permanente e interseccional –uma conquista que deve ser consolidada e ampliada.
Apesar dos avanços normativos e institucionais, as estatísticas e os acontecimentos recentes mostram que o trabalho análogo à escravidão resiste como uma chaga social urgente. Superar esse desafio exige ações coordenadas: legislação eficaz, fiscalização vigorosa, responsabilização judicial, fortalecimentos dos comitês regionais, apoio às vítimas e articulação entre os poderes.
O Brasil, como se vê, tem desenvolvido instrumentos cada vez mais sofisticados para combater as formas de exploração contemporâneas. No entanto, o sucesso dessa empreitada depende de vigilância permanente, vontade política, mobilização da sociedade e, acima de tudo, da valorização da dignidade humana como princípio central de todas as ações do Estado.