A PEC da Blindagem e o risco de retrocesso democrático
É quase impossível persistir otimista sobre o futuro do Brasil após o espetáculo degradante proporcionado pela Câmara dos Deputados no dia 16 de setembro passado. Sem nenhum pudor ou cerimônia, 344 parlamentares aprovaram a Proposta de Emenda à Constituição nº 3/2021, conhecida como PEC da Blindagem, mas, em face de seu teor e de sua extensão, foi apelidada de PEC da Bandidagem. E compreende-se essa qualificação.
A mudança proposta pretende, dentre outras, a alteração do art. 53 da Constituição, visando a ampliar as prerrogativas e garantias dos congressistas, incluindo novas exigências para o Supremo Tribunal Federal processar criminalmente parlamentares envolvidos em crimes. A proposta propõe a inserção de um parágrafo, com o seguinte enunciado: “§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. § 3º A licença de que trata o § 2º deverá ser deliberada pela respectiva Casa Legislativa, por votação secreta da maioria absoluta de seus membros, em até noventa dias a contar do recebimento da ordem emanada pelo Supremo Tribunal Federal”
Essa aberração já existia na Constituição de 1988, mas, a experiencia foi tão desoladora pelos abusos produzidos ao blindar os congressistas, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que em 2001 a PEC nº 35 revogou essas exigências. O atual Congresso – seguramente o pior da história da República – resolveu desencavar a PEC nº 3 de 2021, com propostas mais ambiciosas: não se contentando em retomar inadmissíveis privilégios que os brinda com a impunidade, banidos pela carta constitucional, foram além: agora também pretendem o voto secreto para que a população ignore a total falta de escrúpulos que os motivou a votar uma disposição constitucional que os privilegia e os torna pessoas diferenciadas entre os demais mortais.
Mas a falta de compostura dos parlamentares ainda não terminou. O pedido de licença para as respectivas casas foi aprovado, mas, na mesma sessão, os deputados afastaram o voto secreto. E numa ação absolutamente insólita, no dia seguinte, o Presidente da Câmara dos Deputados, argumentando que a votação se deu durante a madrugada, acolheu a emenda aglutinativa apresentada pelo relator, o deputado Claudio Cajado, e colocou novamente em votação e o voto secreto foi aprovado.
O que causa maior perplexidade é a total ausência de compromisso dos parlamentares com a supremacia da constituição e a ordem democrática, que não hesitaram em violar os princípios da transparência e da publicidade dos atos legislativo, com a perspectiva egoísta de criar um sistema que lhes concede um salvo-conduto para praticar abusos secretos, jogando por terra um dos seus maiores deveres: o de expressar a vontade popular na defesa dos direitos fundamentais.
A atual PEC da Blindagem representa, portanto, um retrocesso histórico. Ao recriar mecanismos que dificultam ou retardam a responsabilização penal de parlamentares, ela reedita um modelo já testado e comprovadamente falho. Não se trata de proteger a democracia contra perseguições, mas de criar privilégios pessoais em um contexto de crescente descrédito da classe política.
Essas novas disposições constitucionais, se aprovadas, representarão um grande retrocesso das instituições democráticas, seja porque cria uma categoria diferenciada de pessoas, seja porque impede o exercício legítimo de o eleitor fiscalizar a conduta do parlamentar que elegeu, seja porque ocasionaria inegável enfraquecimento das instituições de controle, como Ministério Público e Judiciário, que veriam suas competências subordinadas a decisões corporativas. Tudo isso sem contar o claro incentivo à corrupção e abuso de poder.
Mas a tramoia não passou despercebida pelo povo brasileiro que, de forma maciça está protestando em redes sociais, nas ruas, em movimentos populares, repudiando os privilégios que os deputados buscaram para si, de tal maneira que alguns deles pediram desculpas à população, em manifestação tão patética quanto inconsistente que seria melhor que tivessem recolhido suas vergonhas e permanecessem calados e fora dos holofotes. O certo é que não há explicação ou justificativa ética para essas alterações. Ora, o texto constitucional já prevê imunidades adequadas para o pleno exercício do mandato que, em última instância, foi outorgado para legislar em benefício da sociedade, com transparência e altivez.
A transparência, como um dos pilares do regime democrático, não se compatibiliza com a existência de uma etapa clandestina, subtraída à fiscalização da sociedade e vulnerável à interferência de critérios puramente subjetivos, que podem expressar o mero exercício do arbítrio. Interditar a possibilidade de o povo fiscalizar o mandato de um parlamentar significa coartar o exercício da cidadania, que compreende não só a participação em eleições, mas, também, a compreensão se a escolha do parlamentar foi adequada e quais foram os critérios que inspiraram a ação do parlamentar.
Felizmente a Comissão de Constituição e Justiça do Senado da República, demostrando maior sensibilidade ao clamor popular, por unanimidade, sepultou definitivamente esse capítulo deplorável protagonizado pela Câmara dos Deputados, afastando privilégios incompatíveis com a ética e mantendo intocáveis as instituições democráticas tão arduamente conquistadas.