Áreas com presença explícita de facções saltam no País, mas poder estatal de punição segue travado
Um grupo de 25 pessoas lotou um pequeno auditório no 4.º andar do prédio anexo, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Ali estavam alguns dos principais atores que deflagaram em 28 de agosto a maior operação já feita até hoje contra a lavagem do dinheiro e a infiltração do Primeiro Comando da Capital (PCC) na economia formal do País: a Carbono Oculto, que levou ao bloqueio de R$ 3 bilhões da organização criminosa que dominava parte de toda a cadeia produtiva do setor de combustíveis do País.

Foi depois da exposição feita pelos integrantes da primeira mesa do encontro que o diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, fez uma revelação: o fórum deve divulgar uma nova pesquisa que mostra que 40 milhões de brasileiros, ou 19% da população disseram que vivem em áreas com a presença explícita do crime organizado. No ano anterior, esse número estava em 14%.
Ao mesmo tempo, a quantidade de brasileiros que disse conviver com cracolândias no caminho para casa, para a escola ou para o trabalho subiu de 17% para 19% no mesmo período. Essa presença quase sempre se manifesta por meio de algum tipo de domínio territorial exercido pelos criminosos. No Rio, ele é mais do que explícito. Ele é ostentação.
Ali os bandidos erguem barricadas nas ruas e passeiam com fuzis em bailes funk onde é proibido filmar ou fotografar. A punição para os recalcitrantes pode ser uma surra ou até mesmo a morte em um micro-ondas, como aquele construído para executar o jornalista Tim Lopes.

“Quase a metade da cidade de São Gonçalo está sob o domínio de barricadas. O prefeito de Belford Roxo tem como principal mote de sua administração ‘barricada zero’. A gente não sabe como ele está fazendo isso, mas ele está conseguindo retirar as barricadas. O duro é fazer isso sem contratar uma milícia”, disse o deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ).
Paulo era um dos dois únicos parlamentares convidados para o evento – a outra era Tabata Amaral (PSB-SP). Ali estavam os promotores Lincoln Gakiya, Fábio Bechara e Juliano Atoji, todos do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), a superintendente da Receita Federal em São Paulo, Márcia Meng, o secretário nacional de Segurança Pública, Mario Luiz Sarrubbo.
Ao tratar do domínio territorial, Lima citou ainda o fato de que um em cada três brasileiro foi vítima de golpe eletrônico entre julho do ano passado e junho deste ano. Esses dois dados mostrariam a dinâmica do crime no País.

E isso diante de um quadro consensual entre os presentes: o crime se mostra muito mais veloz para aproveitar novas oportunidades e se organizar do que o Estado para agir, prevenir e punir. Falta coordenação, controle, fiscalização e compreensão de que a realidade brasileira mudou. E falta lei: o domínio territorial não é punido. E governo e Congresso não se entendem sobre como tratar o caso.
Ali na plateia havia ainda outros especialistas no combate à lavagem de dinheiro e no domínio territorial exercido pelos bandidos, como o procurador Arthur Lemos Júnior e o coronel Alessandro Visacro, um especialista em forças especiais do Exército brasileiro, e o coronel da Polícia Militar de São Paulo José Vicente da Silva. Havia ainda ausências, como de representantes da Polícia Civil.
Maurício Zanoide de Moraes, que é professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo (USP), advertiu que a infiltração do crime organizado só deve piorar e, talvez, em duas legislaturas, o Congresso estará profundamente infiltrado. “A Carbono Oculto mostrou que as comunidades pobres e a Faria Lima estão conectadas. As pessoas mais simples sabem de forma empírica por que as coisas acontecem. Se tem uma coisa que as pessoas sabem são as conexões de poder. As que não entendem as conexões de poder morrem rápido.”

Para ele, é necessário que a Academia entenda que o Processo Penal atual no Brasil não foi feito para a realidade que o País enfrenta hoje. “Nós precisamos começar a desconstruir aquilo que aprendemos. Hoje eu tenho de ensinar meus alunos a pensar e perceber as demandas. Eu não sei todas as respostas porque as perguntas ainda não foram feitas. A Receita Federal, por exemplo, precisa participar dessas ações. Antes era inimaginável que ela pudesse participar da Segurança Pública, mas também era impensável que a criminalidade fosse atingir um nível de poder econômico e de mescla na sociedade e na economia lícita que nós temos hoje.”
Zanoide fez a declaração dentro da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Não é pouca coisa. Ao seu lado estava o professor Leandro Piquet, da Escola de Segurança Multidimensional (ESEM), da USP. Os dois organizaram a reunião com o promotor Bechara. Márcia Meng lembrou a carência de áreas do poder público, como o Conselho de Controle de Atividades Econômicas (Coaf). “O Coaf não tem carreira própria, a maior parte dos funcionários que estão lá são cedidos pela Receita Federal”, afirmou.
Mais do que isso. Márcia lembrou o papel central da Receita na análise de dados e reunião de informações que permitiu à deflagração da Carbono Oculto. E é aí que se começa a desenhar a mudança defendida por Zanoide. “A Receita tem o lado preventivo que o Estado está ignorando. O Estado tem um banco de dados gigantesco de dados econômico internos e do comércio exterior que para fins de segurança não está sendo utilizado a não ser em situações pontuais, em parcerias em que o sigilo fiscal foi quebrado para que a Receita possa apresentar dados mais consistentes.”

Ou seja, contra o crime organizado e o terrorismo são necessários instrumentos extraordinários. Essa é a lição que a Itália ensinou ao mundo ao pôr na cadeia Totó Riina, o chefão de Cosa Nostra, e Renato Curcio, o fundador das Brigadas Vermelhas. O regime carcerário diferenciado e outras medidas não violam os direitos dos presos desde que tudo seja conduzido em meio ao devido processo legal. Assim decidiu a Corte de Direitos Humanos de Estrasburgo.
As poucas pessoas que estiveram na quinta-feira, dia 9, na USP, chegaram a um consenso. Não é simplesmente aumentando penas ou mudando definições do crime de terrorismo que se vai enfrentar essa nova realidade. Tais medidas só prolongam a impunidade do crime organizado, pois não mexem naquilo que é essencial: as corporações do século 20 incapazes de combater o crime do século 21, Muitos dos membros delas são ávidos na defesa de seus interesses e resistem à criação de uma agência nacional antimáfia, pois, para eles, parece mais importante manter seu poder do que aumentar o do Estado para combater o crime.