Esquerda surfa em erros da direita e vive maré positiva nas redes; bolsonaristas veem desarticulação
A esquerda brasileira atravessa uma maré positiva nas redes sociais e, desde meados de julho, vem acumulando vitórias narrativas em um território até então dominado pelo bolsonarismo. É o que mostra levantamento da AP Exata, obtido com exclusividade pelo Estadão. O estudo indica que o campo progressista assumiu a dianteira em grande parte das discussões do debate político recente, da guerra tarifária com os Estados Unidos à PEC da Blindagem.
Durante boa parte do terceiro mandato de Lula, o cenário foi o inverso: a direita era quem ditava o ritmo do debate digital. Foi assim em episódios como a descoberta de fraudes no INSS e a derrubada do decreto do IOF, que arrastaram o presidente para uma onda de negatividade nas redes. No auge da crise do imposto, Lula chegou a registrar quase 80% de menções negativas no X e no Instagram.

Especialistas e parlamentares apontam uma combinação de fatores para explicar o cenário. Para o cientista político Sergio Denicoli, CEO da AP Exata, o avanço da esquerda é fruto de um discurso mais organizado e da capacidade de explorar os erros da direita, que se viu imersa em disputas internas nos últimos meses. Ele avalia que o momento é favorável ao governo, mas a vantagem pode não durar até a eleição do ano que vem.
“Nos últimos meses, ninguém discutiu o governo, e sim as ações equivocadas da direita, como a atuação do Eduardo (Bolsonaro) nos EUA, a anistia”, afirma Denicoli. “Na semana passada, a direita conseguiu se unir em torno da MP alternativa ao IOF, impondo a primeira derrota no digital em meses. Se essa união se mantiver, pode voltar a ter dominância narrativa. Enquanto isso não acontece, o governo respira e cresce nas pesquisas.”
Juliana Fratini, doutora e mestre em Ciência Política pela PUC-SP, avalia que a esquerda começou a se sair melhor porque deixou de insistir em pautas de costumes ou identitárias e passou a priorizar temas ligados à economia e à redistribuição de renda.
“O brasileiro, em geral, é conservador nos costumes e liberal na economia. Contar com algum tipo de apoio do governo federal, por meio de políticas públicas que garantam respiro financeiro ou desenvolvimento econômico, faz com que o espectro de esquerda tenha maior adesão positiva. Enquanto a conversa identitária afasta, a pauta econômica agrega”, diz Juliana.
Campanha “ricos x pobres” marca virada
Se a crise do IOF marcou um dos piores momentos do governo, foi justamente a reação organizada a ela que abriu espaço para a virada. A campanha petista sob o mote “ricos contra pobres” levou Lula a 64% de menções positivas e inaugurou um novo ciclo narrativo.
O tarifaço de Donald Trump contra o Brasil veio na sequência e deu novo impulso à esquerda, que fez da soberania nacional seu novo eixo de mobilização. A medida, inicialmente celebrada por bolsonaristas, acabou amplamente rejeitada nas redes e expôs fissuras na direita: enquanto uma ala defendia negociar com os EUA, outra insistia na anistia a Jair Bolsonaro como saída para a crise.
No 7 de Setembro, a imagem de uma bandeira dos EUA estendida em um ato bolsonarista reforçou a narrativa da esquerda de que o bolsonarismo atua contra os interesses nacionais. O episódio rendeu quase 70% de menções negativas no X e no Instagram, com o campo progressista dominando 47,9% das publicações.
Depois da condenação de Jair Bolsonaro, o bolsonarismo ensaiou uma reação com a pauta da anistia, que teve a urgência aprovada na Câmara. Mas a aprovação, na mesma semana, da PEC da Blindagem, que cria obstáculos à abertura de investigações contra parlamentares, criou a tempestade perfeita para a esquerda, que voltou a ocupar as ruas.
No X e no Instagram, 46,7% das postagens sobre a PEC vieram da esquerda, e a rejeição foi avassaladora — só 14,2% das publicações apoiavam a medida. Já no caso da anistia, embora a direita tenha sido numericamente mais ativa (37% das postagens, ante 34% da esquerda), a opinião pública se manteve do outro lado: 51,6% das menções criticavam a proposta.
Nas últimas semanas, a aprovação do projeto que amplia a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e eleva a tributação sobre os mais ricos coroou a sequência de vitórias do governo. Embora tenha contado com votos do Centrão e até da oposição, o tema rendeu dividendos principalmente a Lula, por se tratar de uma promessa de campanha.
A exceção à maré positiva da esquerda veio logo depois, com a derrubada da Medida Provisória 1303, que previa medidas alternativas de arrecadação ao aumento do IOF. “A direita dominou a narrativa nesse caso. Não houve uma pressão popular a favor da MP, e prevaleceu a ideia de que o governo quer aumentar impostos”, avalia Denicoli.
Bolsonaristas falam em erros e desarticulação
Fábio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação de Bolsonaro, diz que a ausência do ex-presidente Jair Bolsonaro nas redes e a desarticulação do grupo abriram espaço para o avanço da esquerda.
“Há muito ruído e cacofonia dentro da própria direita, que não consegue se concentrar em um tema único. No meio do caminho, diverge, se perde e caminha por rotas turbulentas, cheias de ruído”, diz ele, que cita como exemplo a PEC da Blindagem. “Deixaram de falar da anistia para falar da PEC da Blindagem, uma proposta impopular, que confundiu a população. Por que a direita parou de falar da anistia para defender a blindagem? Falta unidade”, afirma.
Para Wajngarten, o campo conservador vive um momento de desorientação e ausência de liderança. “A direita está bastante perdida e, nesse vácuo, surgem falsos salvadores da pátria, falsos porta-vozes, que não representam o movimento”, diz ele, que também critica a falta de estratégia institucional do partido. “Há três anos não temos o mínimo de comunicação partidária, nem diretrizes para filiados e apoiadores. O eleitor hoje se informa tanto pela televisão aberta como pelas redes, e o vazio de comunicação deixa esse público órfão. E não é por falta de recurso partidário, é ignorância”, conclui.
O deputado federal Ricardo Salles (Novo-SP) vai na mesma linha e também atribui o avanço da esquerda aos erros da direita. “A esquerda está crescendo em cima da falta de estratégia e dos erros da direita, e não por mérito próprio”, disse o parlamentar, citando brigas internas, discussões públicas e alianças contraditórias com “velhas figuras do centrão”.
O senador Cleitinho (Republicanos-MG) tem outra leitura. Para ele, a esquerda aprendeu a se posicionar no ambiente digital e passou a adotar estratégias que antes só a direita usava. Essa mudança coincide com o avanço de temas menos ideológicos no debate político, como o tarifaço e a PEC da Blindagem, que, apesar do apoio público de parte da direita, enfrentaram resistência dentro do eleitorado conservador. “Essas pautas não são ideológicas. Muita gente de direita foi contra, eu mesmo fui”, afirma Cleitinho.
No PT, a leitura é de que a esquerda se fortaleceu nas redes por ter se concentrado em temas que de fato preocupam o povo brasileiro. “A agenda da direita é anistia, blindagem, impunidade e tarifaço, enquanto a agenda de Lula é a isenção do imposto de renda, taxação dos super-ricos, combate aos privilégios, fim da jornada 6×1, tarifa zero, ou seja, ações concretas para problemas reais do Brasil”, diz Éden Valadares, secretário de Comunicação do PT.
Para ele, manter o bom momento exige seguir conectado aos anseios da sociedade e, ao mesmo tempo, fortalecer a presença digital do partido.
“Construímos uma agenda de treinamento e qualificação da militância com as principais plataformas de redes sociais, vamos investir em enraizamento e aproximação com a base do PT, com as lideranças e influenciadores locais, e vamos apostar no crescimento orgânico e na renovação da nossa linguagem e estética.”
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