‘Covardes’
O cineasta João Batista de Andrade, 85 anos de vida e 60 colecionando láureas somente aos grandes talentos concedidas, teve uma convivência muito próxima com o jornalista Vladimir Herzog. Até os últimos dias de vida de Vlado eles estavam juntos. “Covardes!”, protesta Andrade, ainda dominado pela revolta e inconformismo que carrega desde então, apontando para os agentes da repressão que torturaram e mataram seu amigo nas dependências do DOI-CODI – unidade militar do antigo II Exército, no Paraíso, centro nervoso do arbítrio.
O Estadão entrevistou o consagrado cineasta e escritor sobre os 50 anos do assassinato de Vlado.
No próximo dia 25, quando se completa meio século do crime que abalou o País e acelerou a queda do regime de exceção, o Instituto Vladimir Herzog promoverá na catedral da Sé um ato inter religioso para relembrar a resistência pelo jornalista – ’50 anos por Vlado’ também vai oferecer uma recriação histórica que agrupará lideranças religiosas, familiares, autoridades e artistas.
João Batista de Andrade não conheceu o inferno de Vlado. “Nunca fui preso, apesar de ter sido procurado na Politécnica, o que me obrigou a abandonar o curso, no quinto ano, em 1964, e viver por seis meses no apartamento de um amigo que não era ligado à política”, ele conta.
Mas a indignação e o inconformismo com a morte brutal do amigo o levaram a emprestar sua técnica acurada, a sensibilidade incomum e o olhar privilegiado para produzir uma homenagem a Vlado.
A distinção, na forma de um documentário, leva o nome ‘Vlado, trinta anos depois’.
Não foi fácil. Mesmo após a dissipação da sombra dos anos de chumbo, o governo Fernando Collor (1990-1992) barrou recursos da Embrafilme – produtora oficial de ‘Vlado, 30’ – e inviabilizou a criação. O embargo não o fez desistir.
“Em uma reunião de amigos em 2005, eu resolvi que faria, por minha conta, um documentário sobre o Vlado. E fiz mesmo o ‘Vlado, trinta anos depois’.”
Não só isso. “Fiz parte de uma imensa realização de Clarice (viúva de Vlado) e do Ivo (tinha nove anos quando o pai foi morto), a instalação do IVH, Instituto Vladimir Herzog, que não deixará jamais que o crime de assassinato de Vlado pela ditadura militar seja esquecido.”

Divorciado, dois filhos, dois netos e quatro netas, mineiro de Ituiutaba, no Triângulo, Andrade foi criado ali até os 18 anos. Em 1959 veio para São Paulo. No ano seguinte passou no vestibular da Poli (Escola Politécnica de Engenharia).
Ainda estudante, ligou-se ao PCB. Depois, seguiu oficialmente ligado ao PPS do qual afastou-se há cerca de dez anos.
“Já ativo no cinema brasileiro, abandonei a engenharia para ser escritor e cineasta.”
Foi percorrendo esse caminho que Andrade levou às telas obras reconhecidas, como ‘Doramundo’, seguido pelo proibido ‘Wilsinho Galileia’ (1978), ‘O homem que virou suco’ (1981) – vencedor do Festival Internacional de Moscou -, ‘A próxima vítima’ (1983), ‘Céu Aberto’ (prêmio especial do Júri e melhor filme pelo Office Catholic no Fest Rio 1985).

A inspiração o levou a criar também ‘O país dos Tenentes’ (prêmio melhor filme no Rio Cine e cinco prêmios no Festival de Brasília). “Em 1990, eu me preparei para filmar a história de Vlado: ‘Vlado, o Caso Herzog’. Contava com co-produções em Portugal, Espanha (TVE) e TVs independentes na França e Inglaterra e com o interesse do grande ator Klaus Maria Brandauer, que faria o ‘Vlado’.
Mas não deu certo. Insubmisso, ele tomou uma decisão arrojada.
Leia a entrevista de João Batista de Andrade ao Estadão:
Como foi seu último contato com Vlado?
Foi dois ou três dias antes de sua detenção e morte. Todos nós estávamos muito tensos com a prisão de vários jornalistas amigos, particularmente amigos do Vlado como jornalista, que não era o meu caso, apesar de ter trabalhado, como cineasta, realizando especiais para o programa ‘Hora da Notícia’, o primeiro telejornal diário da TV Cultura que ele e o Fernando Jordão criaram em 1972.

O País vivia uma atmosfera de alta tensão e medo, asfixiado pelo arbítrio. Vlado demonstrava muita apreensão?
Sabíamos das prisões de jornalistas de São Paulo, entre eles o Rodolfo Konder, Anthony Christo, Sérgio Gomes, Paulo Markun e muitos outros amigos e companheiros do Vlado. Eu fui à casa dele e da Clarice, como fiz muitas vezes como amigo e companheiro do trabalho na TV. Vlado nitidamente não queria transmitir qualquer temor, afinal estava em um trabalho legal, como contratado pela TV Cultura e sempre zeloso pelas formas com que as notícias eram apresentadas. Sempre fora rigoroso, o rigor de um jornalista culto e sério, avesso a qualquer manipulação política. Na época, apresentar notícias sérias e importantes para a população já exigia muita coragem.
Qual era o comportamento de Vlado por esses dias?
Vlado transmitia seu desejo de que a gente não mergulhasse em desespero. E se esforçava para se manter lúcido e pronto para enfrentar os riscos e a pressão iniciada pela ditadura militar. Naqueles momentos, Vlado tentava reerguer nosso ânimo e a persistência de nossa seriedade jornalística.
Ele comentou sobre a intimação que recebeu para comparecer ao DOI-CODI? Dois ou três dias depois Vlado foi procurado por agentes da repressão na TV Cultura, onde ele, de volta ao nosso programa, procurava novas formas de jornalismo na TV, a partir de ‘Hora da Notícia’. Eram representantes militares com a ordem de prender Vlado ali mesmo, na TV. Houve uma negociação intermediada pela direção da TV e Vlado prometeu se apresentar para a prisão na manhã seguinte, exatamente o dia 25 de outubro de 1975 em que foi submetido à tortura e assassinado.

Como era o dia a dia com Vlado na Redação da Cultura?
Meu relacionamento com o Vlado era ao mesmo tempo como amigos e admiradores mútuos de nosso trabalho. Via-me sempre como um cineasta que se entregava ao jornalismo, gostava de minhas especiais que marcaram muito o programa. E, como amigo, sonhava com a minha volta ao cinema, como aconteceu de fato em 1978 com o ‘Doramundo’, premiado como melhor filme e melhor diretor no Festival de Gramado naquele ano. Vlado havia elaborado um pré-roteiro a partir do romance homônimo, do Geraldo Ferraz. Mas não teve tempo para ver o filme. O romance tratava justamente de assassinatos misteriosos na cidade de Paranapiacaba, criada como base da ferrovia inglesa que ligava o planalto paulista e o litoral, transportando cargas para exportação na descida para o Porto de Santos e recebendo, na subida da serra.
Como foi o projeto do ‘Hora da Notícia’?
Recontratado pela TV Cultura para recriar nosso programa, o ‘Hora da Notícia’, Vlado não pode terminar o roteiro, mas deu sugestões e rumo para a adaptação que acabei fazendo com a ajuda do ator Paulo José e de meu assistente Alain Fresnot. Fomos premiados. Ofereci os prêmios à memória de Vlado, esse amigo inesquecível cuja morte ainda trava minha voz e me emociona. Covardes!Fale do seu dia a dia com Vlado e a preocupação com o avanço da repressão contra a arte e o talento
Na TV, como já disse, sempre agi, pensei e filmei como cineasta. E conversava muito, tanto com o Fernando Jordão quanto com o Vlado. Eram conversas ricas e enriquecedoras. Nós éramos críticos e tínhamos de realizar o programa e as reportagens dentro de estreitos limites de uma ditadura militar. Os programas e as reportagens deveriam ser corretos, mas reveladores, críticos, numa época em que exigiam nosso silêncio. Fernando e Vlado eram pessoas admiráveis. Embora eu filmasse de acordo com meu jeito de cineasta, meus critérios e escolhas, nossas conversas abriam para mim novos caminhos e desafios. E me agraciavam sempre, festejando minhas voltas à redação com algum tema filmado. Eram os especiais, tal como esses dois amigos.

Que pontos destaca em ‘Vlado, trinta anos depois’?
O filme nasceu exatamente 35 anos após o assassinato dele na prisão militar. O tempo passava e, em 2005, nós, amigos mais chegados ao Vlado, nos reunimos para fortalecer a memória daquele assassinato que tanto marcara a opinião pública no Brasil e mesmo no mundo. A verdade é que essa memória se esvaía. E então decidimos realizar eventos que trouxessem de volta essa memória. Um momento em que o filho mais velho de Vlado e Clarice expunham a necessidade de eternizar essa memória e nossa indignação. Em 1990 eu preparava um novo filme de longa metragem, coroando uma sequência de filmes bem premiados desde que saí do jornalismo. Em 1990, eu me preparei para filmar a história de Vlado: ‘Vlado, o Caso Herzog’. Contava com co-produções em Portugal, Espanha (TVE) e TVs independentes na França e Inglaterra e com o interesse do grande ator Klaus Maria Brandauer, que faria o ‘Vlado’.
Deu certo?
Veio o novo presidente, Fernando Collor (1990-1992), para inviabilizar o filme, retendo os recursos e fechando a Embrafilme, produtora oficial do filme. Então, na reunião de amigos em 2005, eu resolvi que faria, por minha conta, um documentário sobre o Vlado. E fiz mesmo o ‘Vlado, trinta anos depois’. Fiz parte de uma imensa realização de Clarice e do Ivo Herzog: a criação do IVH, Instituto Vladimir Herzog, que não deixará jamais que o crime de assassinato de Vlado pela ditadura militar seja esquecido.Qual a sua rotina aos 85?Sigo realizando os filmes possíveis para um veterano numa era de renovação, participando e competindo com o jovem cinema brasileiro. Terei uma mostra de meus filmes na última semana de novembro, na Cinemateca Brasileira. Ao final da Mostra, já no dia 1* de dezembro, estarei com meus 86. E engrenado numa nova produção, como diretor, a convite do cineasta e produtor Cláudio Khans. E, ainda, como escritor de mais de dez livros, estarei lançando um novo romance. Não há mais tempo para descansar