Por que constitucionalizar a atividade de Inteligência no Brasil?
A atividade de Inteligência, embora já integrada à estrutura do Estado brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988, permanece em uma zona de reconhecimento implícito — existente na prática, mas ausente da letra constitucional. Em tempos de complexas ameaças cibernéticas, informacionais e geopolíticas, a pergunta que se impõe é: por que constitucionalizar explicitamente a atividade de Inteligência no Brasil?
A resposta começa pelo próprio papel da Constituição na organização do Estado. Peter Häberle ensina que a Constituição é uma “cultura aberta”, permanentemente construída e interpretada pela sociedade e por suas instituições. Ela não se resume a um texto normativo, mas se realiza nas práticas que lhe dão vida. Sob essa ótica, a Inteligência já está materialmente constitucionalizada — afinal, proteger a soberania, a segurança e a estabilidade do Estado democrático é condição para a concretização de todos os direitos fundamentais.
Com efeito, a atividade de Inteligência possui previsão constitucional tácita, quando interpretamos o texto de 1988 à luz da teoria dos poderes implícitos, formulada por Hamilton, Madison e Jay em The Federalist Papers. Essa teoria sustenta que, ao atribuir determinadas finalidades a um órgão ou instituição, a Constituição também lhe confere os meios necessários para cumpri-las. Assim, o dever estatal de proteger a segurança da sociedade e do próprio Estado, previsto no art. 5º, caput, da Constituição, implica o poder-dever de estruturar ações de Inteligência voltadas à dimensão preventiva do direito à segurança.
Trata-se de uma função que visa antecipar e neutralizar riscos que possam ameaçar a soberania nacional, a estabilidade institucional e a integridade territorial — inclusive no plano cibernético e geopolítico, diante das ameaças contemporâneas de desinformação, espionagem e ataques híbridos. Essa interpretação é reforçada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconhece a existência de poderes implícitos indispensáveis à consecução das finalidades constitucionais do Estado, e pela doutrina de José Afonso da Silva, segundo a qual a função dirigente da Constituição exige a explicitação dos instrumentos de que o Estado dispõe para alcançar seus fins essenciais.
Todavia, a Constituição brasileira é, à luz da classificação de J. J. Gomes Canotilho, formal e preceitual. Isso significa que, em nosso modelo jurídico, o reconhecimento de funções estatais essenciais demanda previsão expressa, para conferir-lhes legitimidade, controle e estabilidade institucional. O silêncio normativo pode gerar insegurança jurídica, fragilidade operacional e até déficits democráticos — especialmente em áreas sensíveis como a Inteligência, que lida com informações estratégicas e com o equilíbrio entre segurança e liberdade.
Nesse sentido, a Lei nº 9.883/1999, que criou o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), representa apenas uma etapa desse processo — uma normatização infraconstitucional que cumpre papel relevante, mas carece da autoridade simbólica e jurídica que somente o texto constitucional pode conferir.
Como observa Menelick de Carvalho Netto, a Constituição não é apenas um conjunto de regras, mas um projeto político e hermenêutico que organiza a cultura jurídica e orienta as práticas do Estado. Se a Constituição é o espaço simbólico onde se define o que é essencial à vida pública, a ausência da atividade de Inteligência em seu texto revela uma lacuna na concretização do projeto constitucional brasileiro. Essa omissão fragiliza o vínculo entre segurança nacional, defesa do Estado democrático e proteção dos direitos fundamentais.
Constitucionalizar a atividade de Inteligência, portanto, não é apenas uma questão de técnica legislativa. É uma exigência de coerência com a própria estrutura normativa e cultural do constitucionalismo brasileiro. É reconhecer, no nível mais alto do ordenamento jurídico, uma função indispensável à preservação da soberania, da democracia e dos direitos.
Em um mundo cada vez mais interdependente e vulnerável a ameaças não convencionais, a Inteligência estatal não deveria permanecer nas sombras da normatividade implícita. Dar-lhe assento explícito na Constituição é afirmar que a segurança e a informação estratégica, longe de se oporem à democracia, são seus instrumentos de defesa.
Nessa perspectiva, vale recorrer à leitura de Carlos Ayres Britto, que propõe a inversão da pirâmide de Hans Kelsen: em vez de conceber a Constituição apenas como o topo hierárquico do ordenamento jurídico, ela deve ser vista como a base viva e cultural sobre a qual todas as demais normas se erguem. A Constituição, nessa visão, não é apenas norma superior — é fundamento existencial da ordem jurídica, da democracia e da própria vida institucional.
Considerada essa inversão teórica, a atividade de Inteligência, longe de ser um apêndice técnico, revela-se elemento estruturante da própria base constitucional brasileira: é ela que garante a estabilidade, a continuidade e a proteção do Estado democrático de direito diante das ameaças internas e externas que o desafiam.
Constitucionalizar a atividade de Inteligência, expressamente, é, portanto, reforçar os alicerces da legitimidade democrática e do controle institucional das funções de segurança, garantindo que a defesa do Estado e da sociedade se realize com transparência, subordinação civil e fidelidade aos valores constitucionais.