‘Batizado no Hezbollah’: conheça empresário condenado que operava esquema criminoso de criptomoedas
O empresário Dante Felipini compartilhou o vídeo em 2 de janeiro de 2023 em um grupo de WhatsApp e conversou com um amigo identificado como Cauê Leão. O operador de criptomoedas da região da Avenida Faria Lima aparecia com um lenço árabe no pescoço disparando um fuzil AK-47. Estava no Vale do Bekaa, no Líbano. “Tá porra. Vai entrar em grupo extremista?”, perguntou Cauê. “Não, mano, só grupo moderado.”

A conversa prosseguiu. “Bom demais”, exclamou Cauê para, em seguida, demonstrar preocupação. “Esse maluco aí atrás de você não te assusta?” O amigo respondeu que não. “O mano é do Hezbollah. Os caras são ‘bom’, mano. Não é ruim não. Eles que ‘acabou’ com o Estado Islâmico”, respondeu Dante. E continuou: “O cara me recebeu em casa, serviu café”. E, depois, o levou até as montanhas. “Me deram maconha de graça.” Cauê pergunta, espantado: “Tem maconha aí?”. E Dante responde: “Sim, mano. Puríssima. Muito haxixe”.
No vídeo, um suposto integrante do Hezbollah segurava Dante enquanto ele atirava. O empresário explicou: “Doidão de haxixe na toca do Hezbollah. Tremendo de frio. Com uma arma que matou mais judeu do que Hitler na mão. Ainda que só tinha um para segurar.”
O Estadão teve acesso às cópias das conversas e fotos, obtidas pela Polícia Federal, na 2.ª fase da Operação Colossus. Nesta semana, a 6.ª Vara Criminal Federal absolveu Felipini da acusação de financiamento de terrorismo, mas o condenou a 17 anos e 5 meses de prisão por lavagem de dinheiro, evasão de divisão e organização criminosa.
Meses depois daquelas conversas, Dante voltaria ao tema, em outra conversa com um colega identificado como Hugo Cesar. Ele compartilhou o vídeo no Vale do Bekaa e escreveu: “Dia em que me filiei ao Hezbollah. Fiz meu batismo, coisa de louco. Os caras não são terroristas não”. Hugo alertou: “Hezbollah é terrorista sim”. Mas Dante insistiu. “Eles não são terroristas.”
A PF achou a passagem aérea de Dante de Dubai, nos Emirados Árabes, para Beirute, no Líbano. Ele chegou em um voo da Emirates em 28 de dezembro de 2022 e voltou em 4 de janeiro de 2023. Quatro procuradores do Ministério Público Federal (MPF), enviaram um relatório de 13 páginas com as informações ao ministro Rogério Schietti Cruz, que ia julgar o habeas corpus pedido pela defesa no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Dante havia sido preso em 7 de janeiro de 2024, no aeroporto de Guarulhos, quando se preparava para embarcar para Dubai, onde morava. O operador de criptomedas era acusado de participar de um esquema bilionário de evasão de divisas e lavagem de dinheiro do tráfico e do Hezbollah. E teria mandado dinheiro a carteiras de criptomoedas sancionadas por Israel em razão da ligação com a organização libanesa e com a Força Quds, a tropa de elite da Guarda Revolucionária do Irã.
Após receber o relatório do MPF, Schietti manteve a prisão do acusado, que sempre alegou inocência. Sua defesa dizia que o jovem havia feito as operações com as carteiras suspeitas antes de elas serem sancionadas por Israel. E chamava de “fantasiosa” a ligação com o grupo libanês.
Ela estava no relatório complementar de 75 páginas da Delegacia de Repressão a Corrupção e Crimes Financeiros (Delecor), da PF em São Paulo. Ele dizia que Dante usava o pseudônimo Oliver G e, por meio dele, trocou mensagens no WhatsApp com um interlocutor, identificado como Bruno da Silva. Silva mandou em 28 de junho de 2023 um link e o texto sobre o Hezbollah, a respeito de uma apreensão feita, em 21 de maio de 2023, de criptoativos do grupo libanês e da Força Quds, feita por Israel por meio da Administrative Seizure Order ASO – 29/23 (Ordem Administrativa de Apreensão).

O documento divulgado pelo então ministro da Defesa Yoav Gallant mandara confiscar as carteiras de criptoativos do comerciante Tawfiq Muhammad Said al-Law, um libanês que operaria no hawala, rede parecida com o dólar-cabo dos doleiros brasileiros, nascida na Ásia, que movimenta bilhões.
Silva enviou ainda a Dante um relatório analítico sobre um endereço da blockchain TRON, controlada pelo acusado e vinculada à apreensão feita por Israel. O contato pergunta para qual delas Dante enviara recursos. Israel listava 40 carteiras da TRON, uma das quais a PF confirmou ter recebido recursos do acusado. “De fato, foi possível localizar a transação na blockchain TRON, que contém o envio de 100 mil unidades do token USDT em 21/11/2022.”
Os peritos da PF extraíram dados do celular do acusado para demonstrar que ele tinha o controle das carteiras de criptoativos e fizera outras operações de envio de recursos a pessoas ligadas ao Hezbollah. Esse foi o caso de uma operação de US$ 150 mil em USDT em 24 de maio de 2022, enviado à uma das carteiras sancionadas por Israel.
‘Que se foda Israel’
Na troca de mensagens, Silva afirma que a “Master” – provavelmente, a Master BZ Serviços de Tecnologia Ltda – enviou dinheiro às carteiras envolvidas com terrorismo. A Master é uma das empresas em nome de laranjas que, segundo a PF, Dante usava para efetuar remessas para o exterior e negociar criptoativos. “Que se foda Israel”, reagiu Dante. E completou: “Cliente pediu pra pagar”.

Silva discordou. E Dante prosseguiu, afirmando que se considerava “um facilitador”. Disse que “não queria saber” qual o uso era dado aos recursos que movimentava. No fim, concluiu a conversa reconhecendo que tinha um problema em seus negócios: “Compliance ruim, mano”.
Mas esse não era o único problema de Dante, segundo a PF. Os agentes identificaram ligações dele com o comerciante sírio naturalizado brasileiro Mohamad Khir Abdulmajid e com o médico libanês Hussein Abdallah Kourani. Ambos foram denunciados pelo MPF na 2.ª fase da Operação Trapiche, sobre financiamento do Hezbollah.
Abdulmajid é acusado de vender cigarros eletrônicos contrabandeados em Belo Horizonte e de recrutar brasileiros para o Hezbollah. Ele está foragido e seu nome consta da difusão vermelha da Interpol. A 1.ª fase da Trapiche havia sido deflagrada em 2023 para evitar ataques terroristas a alvos judaicos no Brasil. Em 2024, a denúncia por financiamento ao terrorismo contra Dante e os outros dois foi acolhida pela 2.ª Vara Federal de Belo Horizonte.
Para além de identificar que ele detinha “pleno conhecimento dos riscos atrelados à atividade de operador financeiro por ele desempenhada”, a PF afirmou ter comprovado que o próprio Dante entendia que as pessoas que procuravam por seus serviços buscavam uma alternativa aos meios oficiais para esconder a origem criminosa de valores ou o destino ilícito deles, como no caso do terrorismo.
Operador movimentara R$ 13,2 bilhões
Durante a Colossus, os policiais obtiveram provas de que o operador de criptomoedas era efetivamente o responsável pela Makes Exchange Serviços Digitais, que, de agosto de 2017 a abril de 2021, recebeu, em 24.756 transações, R$ 6.608.121.583,51 em créditos, e enviou, em 14.132 transações, R$ 6.606.379.258,68, dos quais R$ 5 bilhões passaram por contas da própria empresa, em uma “manobra para camuflar a origem dos recursos”.

Dante mantinha relação com o empresário José Eduardo Froes, acusado pela PF de ser o centro do esquema investigado na Colossus. O jovem teria feito 400 transferências das contas da Makes para Froes, totalizando R$ 163.581.769,93. E teria ainda realizado transações com empresas investigadas por tráfico transnacional de drogas. O Estadão procurou Froes. Enviou perguntas, mas ele não respondeu. O espaço permanece aberto.
A PF pedira a prisão de Dante em 2022, mas a Justiça a negou. Em 2024 foi diferente. É que os federais descobriram que, mesmo depois de ser alvo da Colossus, Dante teria continuado a operar. Para tanto, havia criado a empresa Etnad Ednarg Trading – “Dante Grande”, escrito ao contrário. A empresa estava em nome de Gabriel Maurício Lourenço, um borracheiro registrado no CadÚnico, com rendimento declarado de R$ 2,3 mil.
Só por meio do Pix, conforme relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), a Etnad Ednarg recebeu 63.542 transferências, somando R$ 428,4 milhões, entre dezembro de 2022 e outubro de 2023. Para a PF, os indícios de fraude eram claros.
“As transações verificadas na conta da empresa Etnad Ednarg alcançam R$ 1.336.026.434,00, ou seja, uma conta recém-aberta de uma empresa de pequeno porte, cujo sócio foi descrito com a profissão borracheiro movimentou entre créditos e débitos no período de dezembro de 2022 a outubro de 2023 algo próximo a R$ 1,4 bilhão”. Dante saíra do Brasil após a Colossus, em 2022, para viver em Dubai. Naquele momento, era alvo de mais cinco inquéritos abertos pela Polícia Civil paulista.

A PF ouviu Dante por videoconferência. O empresário disse que havia obtido autorização para operar em Dubai. Ele entrara no negócio em 2017 e contou que passou a faturar com a compra desses criptoativos nos EUA, onde eram mais baratos, e a venda deles no Brasil, lucrando com a diferença de preço. A partir de 2018, passou a operar com Froes. Mas sempre com nota fiscal e segundo as normas de prevenção à lavagem de dinheiro. Também negou esconder que as operações de câmbio fossem registradas de forma a encobrir a compra de criptomoedas.
E disse ter sofrido uma tentativa de sequestro em 2021, no aeroporto de Congonhas, e tentativas de extorsão praticadas por policiais de São Paulo. Teria sido por isso que ele se mudou para Dubai. Em dezembro de 2023, voltou ao Brasil para visitar a família. Não sabia que as investigações da PF haviam continuado. A Delecor descobriu e pediu sua prisão à Justiça, que desta vez, a concedeu.