A régua de Romero
O crítico Silvio Romero, cáustico em seus julgamentos, utilizava-se de uma régua própria. Nem sempre coincidente com a medida convencional, de que se servia a maioria.
Assim é que numa tarde, encontrou-se ele com Coelho Neto e logo foi dizendo o motivo pelo qual estava profundamente irritado:
– “Agora mesmo fui obrigado a dizer quatro verdades a um burro que se diz admirador de Hegel, ali na Livraria Garnier. Hegel, uma das maiores cavalgaduras da filosofia alemã, encontrou no Brasil outra cavalgadura, que o põe nas nuvens. Destemperei com o asno. E a discussão foi tremenda. Sabe você quem é Hegel? Uma besta! Uma rematada besta, resultante deste conúbio danado: Kant, Fichte e Schelling! E o burro que admira essa azêmola ainda queria impingir-me, como grandes gênios, o Schopenhauer, o Bergson, o Emerson e o Nietzsche, outro lote de descompassadas zebras! Pois não me contive: arrasei-o, como era de meu dever!”.
Simultaneamente, prodigalizava encômios a seus discípulos. Pois no exato momento em que tecia tais considerações, vê passar um jovem seu discípulo. Chamou-o logo: – “Vem cá!”. E apresentando-o a Coelho Neto: – “Veja bem este menino, assim simples e modesto. Pois é um gênio, amigo! Um verdadeiro gênio!”.
Isso porque ao lecionar, não considerava o aluno a tabula rasa, a massa informe que lhe cabia moldar, mas o se pensante, capaz de trava com o mestre os debates mais vivos, no clima fecundo do diálogo das ideias.
Um dia, na Faculdade de Direito, sentiu-se indisposto.
Dirigiu-se aos alunos:
– “Não dou aula hoje. Estou muito burro para falar e vocês ainda mais burros para me compreenderem!”.
Sua excentricidade era legendária. Quando integrava Bancas Examinadoras, todos gostavam de assistir à arguição, pois tinha rasgos originais que faziam sua fama.
Ao examinar um aluno, viu que seu nome de família era Correia. Em vez de formular questões, indagou:
– “É parente de Raimundo Correia?”.
Ante a resposta afirmativa, determinou:
– “Pois então recite “As Pombas”.
Por coincidência, ou por sorte, o aluno sabia de cor o famoso soneto e pode declamar seus catorze versos.
Ao fim do soneto, Silvio Romero aplaudiu e exclamou:
– “Pode ir! Está aprovado!”.
O crítico severo, rigorosíssimo, era um sentimental. Ao surgirem os primeiros versos de Cruz e Sousa, tão estranhos pareciam a Silvio Romero que ele não perdoou o jovem poeta. Não poderia aceitar lances como este: “Cróton selvagem, tinhorão lascivo/ Planta mortal, carnívora, sangrenta/ Da tua carne báquica rebenta/ A vermelha explosão de um sangue vivo”.
Repudiou, com chibata verbal e ferina, a novidade. Era o ímpeto combativo e audaz de seu temperamento.
Foi procurado pouco depois por Nestor Victor, jovem crítico paranaense e amigo de Cruz e Sousa.
– “O senhor foi muito severo com o poeta. É poeta pobre, modesto funcionário da Estrada de Ferro. Negro, tuberculoso, desprezado por causa da cor…”
Silvio ficou comovido. – “Você poderia ler alguma coisa de seu livro outra vez?”.
Após alguns minutos, interrompeu a leitura:
– “Sabe que não é assim tão mau… Lei mais um pouco…”
Nestor Victor volveu à leitura, pausadamente, emocionadamente. Caprichou ao extrair efeitos do verso adequadamente declamado.
Até que Silvio Romero concluiu:
– “Ele é mesmo preto e tuberculoso? Mas então é um grande poeta!”
A rudeza de Silvio Romero não o impedia de ser justo. Um examinando seu, na arguição oral, com a suficiência própria dos moços, quase raiou pela descortesia. O crítico, homem de briga, reagiu com azedume. Mas, ao atribuir o conceito ao aluno, aprovou-o sem relutância.
– “Foi insolente. Não há dúvida de que foi insolente. Mas provou que tem talento. Meu dever era ser justo!”.
O sentimento de Justiça era enfaticamente evidenciado quando ele defendia Tobias Barreto. Se alguém ensaiasse restrições a Tobias, Silvio saía prontamente, com a impetuosidade de seu feitio, a defender o amigo morto.
– “Agridam-me, mas a Tobias não consinto. É uma injustiça. É o desconhecimento dos serviços relevantíssimos que ele prestou à nossa mentalidade”. Muitas de suas polêmicas resultaram dessa defesa. Sobretudo o livro em que, a pretexto de estudar Machado de Assis, nada mais foi do que a exaltação de Tobias Barreto.
