24 de outubro de 2025
Politica

Caso Herzog, 50 anos: final da campanha contra imprensa produz os últimos desaparecidos da ditadura

Orlando Bonfim Júnior deixou sua casa pouco antes das 10 horas. Era um dos últimos dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCB) que permanecia no País. Sua missão era colocar de pé a impressão da Voz Operária, um jornal mensal que a sigla publicava clandestinamente desde 1964.

A gráfica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que funcionava em Campo Grande, Rio de Janeiro: Exército levou jornalistas ao local em 31 de janeiro de 1975
A gráfica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que funcionava em Campo Grande, Rio de Janeiro: Exército levou jornalistas ao local em 31 de janeiro de 1975

O ano de 1975 começaria justamente com a ofensiva do Centro de Informações do Exército (CIE) contra a imprensa clandestina contra o regime e terminaria com um plano que visava emparedar os jornalistas profissionais, acusados de esquerdismo, fossem ou não ligados de fato ao partido comunista. O último passo da ofensiva do CIE ia levar, há 50 anos, aos dois últimos desaparecimentos de opositores registrados pela ditadura.

“Ontem, como hoje, por trás dos ataques ao jornalismo como profissão, está um mesmo projeto autoritário”, disse Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog.

Naquela manhã de 8 de outubro, Bonfim sabia que corria riscos. Ia se encontrar com um colega, mas estava ressabiado. Disse ao motorista que o apanhou: se não voltasse em 20 minutos, ele devia procurar outro militante do partido para avisar Giocondo Dias, então o mais alto dirigente do PCB que continuava no Brasil.

A ação que ameaçava Bonfim já havia deixado um rastro de mortes, prisões e desaparecimentos desde seu início, quando contaram com a ajuda de uma infiltração no coração do partido, a de Severino Theodoro de Mello, um veterano dirigente do partido que, depois de preso, fez um acordo com os militares. E trocou sua vida pela dos camaradas.

Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana; dirigente foi preso e fez acordo para delatar colegas
Severino Theodoro de Mello em seu apartamento em Copacabana; dirigente foi preso e fez acordo para delatar colegas

Por meio dele, os agentes do Destacamento de Operações de Informações, o DOI do 2.° Exército, chegaram ao gráfico Raimundo Alves de Sousa. Seus encontros com outro líder comunista envolvido no esquema das gráficas clandestinas do partido, Hiram de Lima Pereira, passaram a ser fotografados. A Voz Operária ia completar dez anos de edições clandestinas e a ordem era impedir que o jornal fosse usado pela direção do partido para instruir suas organizações de base sobre a linha política da agremiação.

Sousa foi o primeiro a cair. Foi pego quando chegava ao Aeroporto de Congonhas, em frente aos engraxates. Acabou algemado, encapuzado e colocado no assoalho de um carro que o conduziu até um imóvel com estilo rústico, com piso de cimento e iluminado por um candeeiro. Era a boate.

Foi para lá que também levaram Hiram. Os dois eram vigiados fazia mais de dois meses, antes mesmo dos militares chegarem à gráfica que a legenda construía na Casa Verde, em São Paulo, e a que funcionava em Campo Grande, no Rio.

A 59 quilômetros do centro da capital fluminense, a gráfica que a legenda usava desde 1964 ficava embaixo da garagem de uma casa em Campo Grande, numa sala com 54 m² . A entrada principal era feita por meio de dois armários falsos e de uma caixa d’água que podia ser esvaziada por uma bomba especial. Havia ainda um caminho de fuga por um alçapão.

O imóvel que escondia a gráfica do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em Campo Grande, no Rio de Janeiro, fotografado em 31 de janeiro de 1975; imagem permaneceu inédita por 50 anos
O imóvel que escondia a gráfica do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em Campo Grande, no Rio de Janeiro, fotografado em 31 de janeiro de 1975; imagem permaneceu inédita por 50 anos

Com a perda da gráfica, o regime esperava não só desorganizar o partido e calar seu jornal. Ele iniciava um processo que iria atacar os jornalistas profissionais, com base na criação de listas sobre a infiltração comunista nas redações de São Paulo. Ao que que tudo indicava, os militares preparavam novos ataques contra a liberdade de imprensa.

Em uma das listas, os agentes do DOI elencavam 18 jornalistas de três revistas semanais. Em outro documento, 30 eram enumerados, envolvendo profissionais da cinco jornais diários e duas redes de TV, entre eles dez do Grupo Estado, entre os quais, quatro editorialistas do jornal.

Relatório do destacamento dizia que “os meios de comunicação de massa sediados em São Paulo, seja pela importância da área, seja como garantia de acesso do MCI (Movimento Comunista Internacional) aos principais centros populacionais do País, têm sido historicamente alvo de infiltração comunista.”

Os militares afirmavam terem descoberto células comunistas nas revistas Veja, Visão e Realidade, bem como ligações com as escolas de jornalismo da USP e da FAAP. E concluíam que o “esquema subversivo na imprensa da capital de São Paulo” apresentava “fortes indícios de estar sendo articulado pelo Sindicato de Jornalistas de São Paulo” e “distribuído” pelas redações citadas no relatório: Estadão, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Diário Popular, Rede Globo, Rádio e TV Bandeirantes.

O dirigente da Seção Juvenil do Partido Comunista Brasileiro, José Montenegro Lima, foi preso em 29 de setembro, em São Paulo: um dos dois últimos desaparecidos do regime militar
O dirigente da Seção Juvenil do Partido Comunista Brasileiro, José Montenegro Lima, foi preso em 29 de setembro, em São Paulo: um dos dois últimos desaparecidos do regime militar

Antes de dar a sequência ao ataque à imprensa, os agentes do DOI-Codi prosseguiram com a ação para impedir que a Voz Operária voltasse a circular. Foi nessa operação que o regime deteve, em 29 de setembro de 1975, menos de um mês antes da morte do jornalista Vladimir Herzog, o dirigente da Seção Juvenil do PCB, José Montenegro de Lima, o Magro, então com 31 anos.

Lima dividia um apartamento com um colega de partido na Rua Brigadeiro Galvão, na Barra Funda, na zona oeste de São Paulo. Tinha recebido da cúpula do PCB a tarefa de erguer uma nova gráfica para o partido imprimir seu jornal no País. E devia trabalhar com Orlando Bonfim nessa missão. Magro sabia do risco que corria e relatou isso para quase uma dezena de amigos.

No dia seguinte, ele teria um encontro com sua namorada, Sandra Maria Lisboa Nogueira, mas não apareceu. “Tínhamos um encontro marcado ali num barzinho que a gente ia muito, em frente ao Aquário Santos. Fiquei lá a tarde toda. Mas ele já ‘tava’ preso, eu não sabia”, disse. Magro foi levado para um cárcere clandestino, onde foi torturado por cerca de dez dias.

A tenente Beatriz Martins, a agente Neuza, em sua casa, no interior de São Paulo; ela capturou Mello em 1974 e contou sobre Montenegro e Bonfim
A tenente Beatriz Martins, a agente Neuza, em sua casa, no interior de São Paulo; ela capturou Mello em 1974 e contou sobre Montenegro e Bonfim

Os agentes trouxeram Bonfim do Rio para o mesmo lugar onde Montenegro era mantido, um sítio em Araçariguama, na Grande São Paulo, às margens da Rodovia Castelo Branco, conforme contou à reportagem a agente Beatriz Martins, a agente Neuza, do DOI, uma tenente da PM de São Paulo que trabalhava na mais secreta das Seções do destacamento, a Seção de Investigações, comandada pelo capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney.

Ali os dois foram executados na segunda semana de outubro com injeções de curare, um veneno usado para sacrificar cavalos. O processo teria contado com a supervisão do tenente-coronel Audir Santos Maciel. Os corpos foram cortados e amarrados em mourões de concreto antes de serem levados em uma procissão pela estrada até a região de Avaré. Eram o sétimo e o oitavo integrantes do partido mortos naquele ano depois de presos.

No caminho, revelou Beatriz, eles forma parados por policiais rodoviários, mas a carteirada do coronel Maciel impediu maiores problemas. Os corpos acabaram atirados de cima de uma ponte, no Rio Avaré. A Voz Operária só voltaria a ser impressa no Brasil após a anistia, em 1979. Mas ação do DOI não ia acabar ali. Seu próximo passo levaria à série de prisões concluída com a morte do jornalista Vladimir Herzog.

 

 

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