Brasil quer democracia além das ‘quatro linhas’, com direitos sociais e participativos, diz estudo
Os brasileiros apoiam a democracia, mas não se contentam com a garantia de que o jogo ocorra “dentro das quatro linhas”. Aos democratas do País, além de condições mínimas, como eleições livres, igualdade perante a lei e alternância no poder, o regime deve promover, também, quesitos como justiça social, proteção de minorias e mecanismos de participação política.
Os dados são de um estudo do Instituto Representação e Legitimidade Democrática (INCT Redem), vinculado à Universidade Federal do Paraná (UFPR), com coleta de dados conduzida pelo Ipsos/Ipec. Embora predominante, o apoio à democracia convive com um índice elevado de não democratas. Cerca de um a cada três brasileiros não concorda com as condições mínimas de um regime democrático.

A pesquisa é inédita em diferenciar a visão de democracia dos brasileiros, incorporando mais variáveis à declaração de apoio ou rejeição ao regime. Os dados demonstram que, mesmo entre democratas, persiste uma profunda desconfiança das instituições, além de insatisfação com as condições de vida da população. O descontentamento concreto pode minar a adesão em abstrato à democracia. Além disso, os não democratas também se preocupam com a melhoria das condições sociais, propiciando a ascensão de “aventureiros” dispostos a prover demandas da sociedade, mas sem compromisso com as regras do jogo.
Segundo Adriano Codato, cientista político e professor da UFPR, o levantamento propôs “uma questão em aberto” sobre o conceito de democracia. “Ao invés de partir de um modelo de democracia e perguntar o quanto a pessoa se aproxima dele, nós perguntamos: ‘O que é democracia para você?’”, explicou o pesquisador.
A coleta de dados, conduzida pelo Ipsos/Ipec, compilou 1.504 entrevistas presenciais com brasileiros de 16 anos ou mais nas cinco regiões do País. A margem de erro é de 2,5 pontos porcentuais e o nível de confiança é de 95%.
Os entrevistados foram questionados a classificar, em uma escala de 0 a 10, quão importantes consideravam para um regime democrático critérios como eleições livres e justas, igualdade perante a lei, liberdade de imprensa, de expressão, efetividade de órgãos de controle e combate à pobreza.
A isonomia jurídica e a realização de eleições livres foram os critérios de maior consenso. Em ambas as perguntas, 78% dos entrevistados afirmaram que os itens eram indispensáveis a uma democracia, atribuindo-os grau máximo na escala de 0 a 10. A aceitação de ambos os critérios foi definida como o parâmetro mínimo para classificar o entrevistado como um democrata. Cerca de dois a cada três brasileiros aderem, em abstrato, à democracia, enquanto um a cada três atribuiu menor ou nenhuma relevância à igualdade perante a Justiça e à garantia de eleições livres.
Além dos critérios mínimos, foi feito um cruzamento com os demais itens do questionário. Assim, constatou-se que os brasileiros têm uma visão ampliada e exigente dos direitos que caracterizam um regime democrático. São os “democratas multidimensionais”, como define o estudo. A esse grupo, a democracia vai além da garantia de que o jogo ocorra “dentro das quatro linhas”, devendo promover, também, redução das desigualdades, proteção a minorias, liberdades individuais e direitos de participação no processo decisório.
Entre os entrevistados, 42,4% registram visões “multidimensionais” de democracia, incorporando preocupações para com o regime de ordem liberal, social e participativa.
A dimensão liberal contempla quesitos como manutenção do Estado de Direito, proteção a minorias e garantia das liberdades de expressão e de imprensa. Na esfera social, figuram temas como redução das desigualdades, provisão de bem-estar social e políticas de inclusão; na seara participativa, por fim, estão os anseios por mecanismos de participação direta no processo político, como consultas populares e formas de engajamento além do voto.
Promoção de direitos sociais é valorizada
A questão social é a de maior relevância entre os entrevistados. Além de integrar a visão de democracia “multidimensional”, outros 21,2% exigem de um regime democrático a promoção de direitos sociais.
Em comparação a outros países em que o questionário foi aplicado, a ênfase social é particular ao Brasil, explicou o cientista político Ednaldo Ribeiro, professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da UFPR. “É uma particularidade esperável num contexto de profunda desigualdade, mas a magnitude da diferença foi significativa e chamou a atenção”, disse Ribeiro.
Em média, nas nações europeias, 7,3% dos entrevistados registram uma visão abrangente de democracia, um índice sensivelmente menor ao constatado no Brasil, de 42,4%. Por outro lado, o patamar de não democratas brasileiros supera em muito a média da Europa: 21,9% do continente contra 31,9% do Brasil.
“São dois polos. Por um, é positivo, porque temos pessoas com concepções de democracia mais complexas, que envolvem (preocupação com) desigualdade social e de renda, mas também temos um ponto preocupante, pois um terço da população acha que eleições não são importantes para a democracia”, disse Ednaldo Ribeiro. “É extremamente grave e mostra (o resultado) do trabalho de descrédito das eleições nos últimos dez anos”.

Legitimidade e erosão do regime
A visão ampliada de democracia, por si só, não a blinda da ameaça de erosão. Por um lado, o descontentamento com as condições de vida pode afetar a legitimidade do regime; por outro, há margem para a ascensão de projetos atentos ao componente social, mas sem compromissos com as “quatro linhas”.
“As pessoas veem a democracia como um regime que deve ter entrega não só política, mas entrega social”, afirma Adriano Codato. “Se o Estado não é eficiente, não entrega política social, política compensatória, mantém a inflação baixa e aumenta o salário mínimo, isso vai erodindo a legitimidade da democracia também”.
“Não há apoio abstrato, normativo à democracia, que sobreviva a décadas de sistema ineficiente, que não entrega coisas”, completa Ednaldo Ribeiro.
O estudo identificou que mesmo entrevistados de perfil não democrata têm preocupações com direitos sociais, propiciando o surgimento de projetos políticos que rivalizem com a democracia. “São potenciais apoiadores de aventureiros que prometem entregar demandas sociais, mas sem compromisso com a legitimidade judicial”, afirma Ribeiro.
