26 de outubro de 2025
Politica

Caso Herzog: ato na Sé tem pedido de perdão do Estado e protesto contra anistia a Bolsonaro

Cinquenta anos depois da morte do jornalista Vladimir Herzog, seu assassinato nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, foi lembrado com um ato inter-religioso “contra a violência e pela paz” na Catedral da Sé. Pela primeira vez um presidente da República em exercício – Geraldo Alckmin – esteve presente na celebração, bem como a presidente do Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.

A ministra pediu perdão: “Perdão a todos que tombaram e sofreram lutando pela liberdade no Brasil. Perdão pelos erros e omissões judiciais cometidas durante a ditadura. Eu peço perdão a Vladimir Herzog e sua família, a Paulo Ribeiro Bastos e sua família, a Rubens Paiva e a Miriam Leitaõa e seus filhos, a José Dirceu, a Aldo Arantes, e José Genoino, a Paulo Vannuchi, a João Vicente Goulart e a tantos outros homens e mulheres que sofreram com as torturas, as mortes, os desaparecimentos forçados e o exílio.”

Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar
Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar

A ministra foi interrompida por aplausos e gritos “sem anistia”. E continuou: “Eu peço, enfim, perdão à sociedade brasileira e à história do País pelos equívocos judiciários cometidos pela Justiça Militar federal em detrimento da democracia e favoráveis ao regime autoritário”.

Em seguida, foi a vez de Alckmin falar, quase ao término da celebração. “Nem a mais covarde das mentiras, forjada pela mais vil das tiranias, foi capaz de apagar a verdade truculenta que se abatera sobre o país. Assim como na defesa da verdade, não houve lugar para a farsa do suicídio, da mesma forma, por amor à liberdade, jamais haverá lugar para o nosso esquecimento”, disse o presidente em exercício.

Alckmin prosseguiu, afirmando: “A memória de Vladimir Herzog segue viva e evoca em cada um de nós a promessa de defender os valores sagrados da vida, da liberdade e dos direitos humanos. Por isso, reafirmo aqui, em nome do presidente Lula e em meu próprio, a nossa promessa, e muito mais que promessa, o nosso inabalável compromisso e perseverante empenho na defesa da verdade, da justiça e da democracia. Viva a aliança da fé, das religiões, pela dignidade humana.”

Já na chegada à igreja, as falas das dois mais importantes autoridades presentes mostravam o impacto do ato. “A morte de Vladimir Herzog foi o resultado do extremismo do Estado que, ao em vez de proteger os cidadãos os perseguia e os matava. Por isso, a importância de se fortalecer a Justiça, a democracia e as liberdades”, afirmou Alckmin ao chegar.

A ministra do STM também se manifestou ao chegar. “Esse ato de hoje significa que estamos aqui para honrar a memória de Vladimir Herzog, que não podemos permitir que a ditadura retorne porque lamentavelmente o autoritarismo nos assombra, mesmo quando nós imaginávamos já estava consolidada no País”, disse.

Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar
Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar

Eram 19h05 quando um coral atravessou catedral lotada, onde uma multidão, recebida com flores brancas na entrada, aglomerava-se em seu interior. Ele se postou na lateral da catedral para iniciar a celebração 20 minutos depois. Cantou a Missa Criolla, do compositor argentino Ariel Ramirez, que homenageou duas religiosas alemãs, Elisabeth e Regina Brückner, que levavam escondidas comida a prisioneiros de um campo de concentração nazista.

Em meio ao canto do coral, um vídeo exibiu os nomes dos mortos pela ditadura militar (1964-1985). Seguiu-se um minuto de silêncio em memória de Vlado e de todos os mortos e desaparecidos do período pela violência do Estado até os dias de hoje. O silêncio foi rompido então pelos acordes da canção O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, executada por Cida Moreira e pelo coro.

Promovido pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Comissão Arns, o ato levou ao altar o cardeal-arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer, o rabino Uri Alam, da Congregação Israelita Beth-El e a pastora Anita Wright, filha de um dos religiosos que participou há 50 anos do ato ecumênico original, o pastor Jaime Wright. O primeiro a falar foi o cardeal Scherer.

Ato ecumênico em homenagem a Vladimir Herzog, na catedral da Sé
Ato ecumênico em homenagem a Vladimir Herzog, na catedral da Sé

“Há 50 anos, aglomeravam-se nessa mesma igreja uma multidão que estava consternada e clamava por respeito, liberdade e democracia em razão da morte de Herzog, brutalmente torturado e assassinado pelo regime militar em razão de sua lutar pelas liberdades democráticas e pelos direitos humanos”, afirmou o cardeal em sua fala aos presentes, antes que o hino nacional enchesse com seus acordes a nave principal da catedral.

A Odilo coube a difícil tarefa de apascentar os espíritos dos presentes, uma tarefa que esteve nas mãos do eloquente d. Paulo Evaristo Arns, o carismático franciscano que conduziu a celebração naquele outubro de 1975. “Se estamos aqui sem medo é porque devemos isso pessoas que pagaram um preço alto, não raro com suas vidas. Estamos aqui para que a convivência social seja livre de toda sorte de violência, de intolerância e injustiça”, concluiu.

Após a voz do cardeal ressoou pelo recinto a mensagem do rabino. Há 50 anos anos, ali estivera Henri Sobel, e sua dicção inconfundível para testemunhar a violência que se abatera contra Herzog. “Dedico minha fala à elevação das almas de Vladimir Herzog, do cardeal Arns, do rabino Sobel e do pastor Wright e à memória de todos que foram assassinados durante a ditadura” afirmou Alam.

Para o pastor, a morte de Herzog foi o ponto de virada, o início do fim da ditadura no país. “Nós reunimos aqui para afirmar que aprendemos com o passado. Todo ser humano é criado á imagem de Deus. Torturar e matar diminuiu a presença de Deus. Quando o estado tortura e mata, morrem as vítimas e a crença na Justiça. Lembrar é resistir. Resistir é viver.” O rabino orou em hebraico e concluiu. “Nós agradecemos por estarmos vivos, por termos resistido.”

O cardeal-arcebispo d. Odilo Scherer e a pastora Anita Wright (sentada)
O cardeal-arcebispo d. Odilo Scherer e a pastora Anita Wright (sentada)

Por fim, foi a vez de Anita. Seu pai o pastor Wright não estava ali por acaso em 1975. Seu irmão – e tio de Anita – era o ex-deputado Paulo Stuart Wright, dirigente da Ação Popular, uma de origem na esquerda católica, que se opunha ao regime e foi proscrita pela ditadura.

Paulo fora sequestrado em 1973 por homens do mesmo DOI do 2º Exército, que dois anos mais tarde matariam Herzog. E desapareceu em meio à nacht und nebel, a noite e à neblina daqueles anos.

“Estamos aqui reunidos para celebrar a memória de Vladimir Herzog e de todas as vítimas da ditadura militar”, afirmou a pastora. Ela lembrou a morte e o desaparecimento de seu tio. E a luta de outros familiares de vítimas da ditadura. “Estamos aqui para reconhecer a importância de um ato ecumênico feito a 50 anos no processo de retomada da democracia.”

Ela completou: ” A ditadura militar fez que andássemos pelo vale da sombra da morte, mas a segurança de ter Deus nosso pastor ao nosso lado nos deu coragem, nos guiando e consolando com sua vara e o Seu cajado. Há 50 anos atrás, Deus preparou neste mesmo lugar uma mesa para mais de 8 mil pessoas na presença do inimigo que cercava a Praça da Sé.”

Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar. Foto: Fábio Vieira/Estadão
Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuni lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar. Foto: Fábio Vieira/Estadão

Depois, foram homenageadas as pessoas que há 50 anos estiveram no ato e que neste sábado também compareceram à catedral enquanto a multidão presente gritava “sem anistia” antes que um vídeo com a fala do jornalista Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas fosse exibido. E foi aplaudido o juiz federal aposentado Márcio José de Moraes, que em 1978 condenou a União pela morte do jornalista.

Na sequência, em um vídeo, a atriz Fernanda Montenegro leu a carta escrita por Zora Herzog, mãe de Vlado, para o juiz Moraes. “Meu filho não voltará, mas seu bom nome não ficará manchado. Se seu desaparecimento não foi em vão para a história do País, para mim sua perda é definitiva, minha dor não tem consolo.”

O esquema de policiamento na Praça da Sé estava lá para proteger as autoridades e as pessoas que foram ao ato ecumênico, em contraste com os 172 agentes do Departamento de ordem Política e Social (Dops),, que estiveram ali há 50 anos para vigiar, controlar, fichar e prender, se fosse o caso, os participantes da celebração de então, que contara com os cardeal-arcebispo d. Paulo Evaristo Arns, o pastor Wright e o rabino Sobel.

Seguiram-se outras falas até que chegou a vez de Ivo Herzog, o filho do jornalista, que tinha nove anos quando o pai foi assassinado. Ivo agradeceu a presença de Alckmin, com o todo o simbolismo que isso carregava, o fato de o presidente em exercício estar ali. Ao seu lado estava André Herzog, seu irmão. “Viva a paz, viva a Justiça. Vila a liberdade. Viva Vladimir Herzog. Viva a democracia brasileira”, concluiu.

No fim, o ato virou um protesto contra a anistia. Foi quando o ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, pela comissão Arns, se pronunciou: “Hoje vivemos sob a ameaça da anistia”. Foi interrompido pela assistência, que voltou a gritar: “Sem anistia”. “Graças a Deus ainda estamos vivos. Os direitos humanos não podem ser violentados”, afirmou.

Até que a ministra Elizabeth tomou a palavra com seu pedido de perdão. Foi aplaudida. Última fala naquele dia, foi também a mais espera: a do presidente em exercício Alckmin, símbolo de que o Estado brasileiro se dissociava do crime cometido em seu nome no passado. “Vivam todos os que lutaram pela nossa liberdade. Viva Herzog! Viva a democracia! Viva o Brasil!”, afirmou Alckmin. O ato foi encerrado às 21h40 horas.

 

 

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