29 de outubro de 2025
Politica

O país entre avanços normativos e retrocessos práticos

O combate ao trabalho análogo à escravidão permanece como um dos maiores desafios civilizatórios do país. Embora o Brasil possua um arcabouço jurídico avançado e um sistema de fiscalização reconhecido internacionalmente, a persistência de casos e a resistência de certos setores econômicos mostram que a distância entre a norma e a prática ainda é profunda.

Recentes matérias destacaram o papel central do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF), na consolidação de instrumentos de enfrentamento à exploração laboral. Em decisões recentes, o STF reafirmou a constitucionalidade de leis estaduais que punem empresas envolvidas, direta ou indiretamente, em situações de trabalho escravo. O entendimento representa um marco – reconhece que o combate à escravidão moderna não é apenas tarefa do Executivo, mas dever compartilhado entre os poderes e legitimado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Contudo, há sinais de contradição institucional. Ao mesmo tempo em que o Supremo reforça a proteção de direitos fundamentais, outros movimentos judiciais — como a suspensão de ações individuais que envolvem repercussão geral — acabam gerando efeitos paralisantes sobre casos concretos. Trabalhadores resgatados, muitas vezes, veem suas demandas por indenização ou reconhecimento de vínculo permanecerem indefinidamente suspensas, o que fragiliza a eficácia das decisões protetivas e enfraquece o caráter dissuasório das sanções.

A chamada “lista suja” do trabalho escravo — o cadastro público que relaciona empregadores flagrados em condições degradantes — é um dos instrumentos mais eficazes de prevenção e transparência. Importante deixar claro que, do ponto de vista da Inspeção do Trabalho, trata-se de um instrumento hígido, técnico e juridicamente sólido – as inclusões seguem critérios estritamente legais, não há atrasos injustificados e as exclusões são automáticas após dois anos, conforme prevê a norma.

O problema de fundo, portanto, não reside na ferramenta em si, mas na interferência política que busca impedir a inclusão de determinadas empresas. Essa distinção é fundamental – a Inspeção do Trabalho atua com base em critérios técnicos e impessoais, enquanto a gestão do MTE, sujeita a pressões de ordem política e econômica, por vezes adota uma postura de “acomodação” que compromete a credibilidade do sistema.

A lista cumpre função essencial – introduz, no mercado, um critério de responsabilidade social que deveria ser natural em qualquer economia madura. Sua manutenção e fortalecimento são indispensáveis para garantir que o lucro não se sobreponha ao direito fundamental ao trabalho digno. A credibilidade desse instrumento depende, porém, de critérios estáveis, autonomia técnica e transparência absoluta — sem espaço para seletividade política ou “passadas de pano” que distorcem a finalidade pública do cadastro.

Outro ponto relevante é o papel das legislações estaduais. O STF tem validado leis que ampliam a responsabilização de empresas envolvidas em trabalho escravo, como as que preveem a cassação da inscrição estadual de estabelecimentos flagrados — um exemplo concreto de como os entes federativos podem colaborar no combate à exploração.

Até o momento, as decisões de repercussão geral não têm afetado diretamente o tratamento do trabalho análogo à escravidão. O tema que aguarda definição e poderá ter reflexos amplos é o da pejotização — em especial o Recurso Extraordinário 958.252 (Tema 725 da repercussão geral), no qual se discute a validade da terceirização e da contratação de pessoas jurídicas para atividades-fim. A decisão final sobre o tema terá impacto não apenas nas relações de trabalho formal, mas também na forma como se identifica e se combate a precarização extrema que pode desembocar em situações análogas à escravidão.

O enfrentamento ao trabalho escravo, porém, não se limita à responsabilização de infratores. É também um problema estrutural, enraizado na desigualdade social, na informalidade, na concentração fundiária e na precarização das relações de trabalho. A repressão, por si só, é insuficiente. É preciso articular políticas públicas de prevenção, capacitação profissional, fortalecimento sindical e proteção a grupos historicamente vulneráveis — sobretudo trabalhadores rurais, migrantes e mulheres.

O Brasil precisa resistir à tentação de naturalizar a degradação como custo da competitividade. Quando a sociedade passa a enxergar a exploração extrema como “inevitável” ou “residual”, o Estado perde sua capacidade de resposta e a dignidade humana se converte em retórica vazia.

As decisões do STF e a atuação firme da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho apontam um caminho possível – reafirmar a centralidade dos direitos fundamentais e o dever de responsabilidade das empresas. O desafio agora é transformar decisões judiciais e listas administrativas em mudanças efetivas de conduta. Sem isso, continuaremos a conviver com a contradição de um país que repudia a escravidão em seus textos legais, mas ainda a tolera em seus canaviais, garimpos e confecções.

 

 

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