A sombra do Carandiru paira sobre o Rio de Janeiro
A megaoperação policial que resultou em mais de 120 mortes nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, expõe uma ferida ainda aberta na segurança pública brasileira: nossa incapacidade de investigar adequadamente ações policiais que resultam em mortes. Como advogada criminalista com mais de três décadas de experiência no Tribunal do Júri, vejo com preocupação os paralelos entre este episódio e o Massacre do Carandiru que podem levar, mais uma vez, à impunidade.
A primeira e mais grave falha desta operação foi a não preservação da cena do confronto. Não se trata de um detalhe técnico menor, mas de um requisito legal fundamental previsto no Código de Processo Penal. Toda morte decorrente de intervenção policial deve ser rigorosamente apurada, mesmo quando há aparente legítima defesa dos agentes.
Para individualizar a conduta de cada policial, saber quem atirou, em que circunstâncias e se houve excesso, a perícia criminal independente é indispensável. É através do levantamento completo da cena, da análise das munições encontradas nos corpos e no local, e do confronto balístico com cada arma dos policiais que se reconstrói tecnicamente o que aconteceu. Sem a preservação do local, essa análise fica irremediavelmente comprometida.
Reconheço a complexidade logística de uma operação dessa magnitude. Isolar uma área de confronto densamente povoada, com 2.500 policiais envolvidos, enquanto o conflito ainda reverbera, é um desafio imenso. Seria necessário um segundo efetivo, igualmente grande, apenas para garantir o trabalho pericial.
Mas a dificuldade não anula a obrigação legal. O Estado que tem capacidade para mobilizar milhares de agentes em uma operação deve ter a mesma capacidade para preservar adequadamente a cena do crime. A ausência de planejamento para esta etapa fundamental revela uma mentalidade que prioriza a ação em detrimento da responsabilização.
O precedente perigoso do Carandiru
A história nos ensina onde essa negligência leva. No Massacre do Carandiru, a impossibilidade de individualizar as condutas dos 326 policiais militares que participaram da ação resultou, décadas depois, na anulação das condenações pelo Supremo Tribunal Federal. Foram 111 mortos e, ao final, nenhuma responsabilização efetiva.
O risco de repetirmos esse cenário é real e iminente. Sem o caminho técnico adequado, a investigação nasce morta. Teremos mais de uma centena de mortos e, novamente, nenhuma resposta da Justiça.
O Estado de Direito em xeque
Não podemos normalizar a tragédia. A morte de tantas pessoas, independentemente das circunstâncias, viola qualquer pilar do Estado de Direito. Aceitar que “no Rio de Janeiro é assim mesmo” é capitular diante da banalização da violência e abrir um precedente perigoso para futuras operações.
A urgência agora é dupla: conduzir o que ainda for possível da investigação, aproveitando evidências remanescentes, e evitar que a opinião pública e os agentes do Estado se acostumem com essa realidade.
É preciso que a sociedade compreenda: investigar adequadamente ações policiais não significa criminalizar a atividade policial, mas sim garantir que ela seja exercida dentro dos limites legais. A Justiça brasileira tem uma nova oportunidade de mostrar que aprendeu com os erros do passado. Não podemos desperdiçá-la.
