Gilmar sobre operação no Rio: ‘Temos que nos perguntar o que de errado temos feito’
BRASÍLIA – Os Três Poderes precisam discutir juntos uma solução para a crise de segurança no Rio de Janeiro, na avaliação do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Para ele, não é momento de apontar culpados após a operação tida como a mais letal do País e que resultou em pelo menos 121 mortos – quatro deles policiais. Gilmar defendeu, porém, que é preciso olhar para frente e buscar soluções, ainda que todos precisem fazer uma autoavaliação sobre suas ações, inclusive o Judiciário.
A culpa sobre a operação no Rio foi ilustrada pelo ministro como “um filho feio”: não tem pai. “Temos que nos perguntar o que de errado temos feito. E qual é a nossa responsabilidade nesse latifúndio. Então, não é momento para polemizar, mas vamos ter um posicionamento mais claro a partir de todas as investigações. Sobretudo, vamos trazer propostas construtivas: organizar para frente e ver o que podemos fazer para melhorar”, argumentou em entrevista concedida ao Estadão/Broadcast em seu gabinete.
Mesmo com a predileção pelo ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, como sucessor de Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF), o decano afirmou que a opinião sobre potenciais candidatos não significa necessariamente a exclusão de outros. O ministro salientou que, se o favorito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva até o momento, o advogado-Geral da União, Jorge Messias, for o indicado, será igualmente bem recebido pela Corte. “Nesse momento de crise que a gente tem vivido com os Estados Unidos, ele tem sido um interlocutor extremamente importante”, considerou.
Mendes também falou sobre a decisão do ministro Luiz Fux de mudar de turma na Corte, avaliando que se trata de uma motivação de “foro íntimo” e sem reflexos sobre o julgamento da tentativa do golpe de 8 de janeiro. Na área econômica, o ministro defendeu que o STF é consciente de que problemas fiscais são “trágicos” para todos e considerou que há um diagnóstico errado em culpar o aumento da pejotização pelo problema de financiamento da Previdência.
Como o senhor vê a situação do Rio de Janeiro?
Temos dedicado energia a isso, com a ADPF das Favelas. É óbvio que a gente lamenta tudo o que ocorreu, mas também é preciso reconhecer toda a dificuldade que existe no trabalho de segurança pública no Rio. Há problemas estruturais que precisam ser vistos. Está muito claro que o Estado necessita de ajuda, que não basta a ação local. É preciso que haja medidas também no plano federal.
Como fazer isso? Se chegou a falar até em GLO (Garantia da Lei e da Ordem)…
A própria PEC da Segurança Pública já indica a necessidade de maior coordenação. Fomos nós – na minha gestão aqui no Supremo – os primeiros a falar da criação de um sistema de segurança pública, naquela época da Estratégia Nacional de Segurança Pública, que lançamos junto com os outros setores, Legislativo e Executivo. Depois, no governo [de Michel] Temer, o [então ministro da Defesa] Raul Jungmann liderou essa ideia do Susp [Sistema Único de Segurança Pública]. Hoje, acho que se avança nesse sentido e, Oxalá, se consiga meios e modos de enfrentar essa questão. É um tema prioritário.
O assunto ganhou grandes proporções e deve ser tema da eleição de 2026?
Certamente vai estar na eleição e depois também. Acho que tem vários casos de sucesso. Eu vi a exposição do governador do Rio Grande do Sul [Eduardo Leite], mostrando que tem conseguido bons resultados a partir dos investimentos corretos. Se fala também de bons exemplos vindos do Piauí, usando inteligência artificial, tecnologia. O caso do Rio é extremamente desafiador, mas não são coisas insolúveis. É fundamental que isso entre nas prioridades e que todos pensem naquilo que devem fazer. Tem a responsabilidade de todos: Ministério Público, Judiciário, Polícia…
O que o senhor achou da crítica do governador em relação à ADPF das Favelas?
Não é o momento para fazer esse tipo de debate, é muito fácil ficar achando responsáveis. A ADPF das Favelas é uma consequência, não a causa, veio em função do quadro todo de violência policial. A gente não pode, a essa altura, começar a culpar os policiais por tudo isso. Os policiais morrem, se sacrificam. A questão é muito complexa. Temos que nos perguntar o que de errado temos feito. E qual é a nossa responsabilidade nesse latifúndio. Então, não é momento para polemizar, mas vamos ter um posicionamento mais claro a partir de todas as investigações. Sobretudo, vamos trazer propostas construtivas: organizar para frente e ver o que podemos fazer para melhorar.
O senhor acha que a ADPF das favelas restringiu demais as operações no Rio?
Não. Se discutiu muito entre a liminar e a decisão de mérito, muitas mudanças foram feitas. Inclusive, a determinação de que houvesse a investigação. São dois inquéritos que foram abertos na ADPF das Favelas para investigar abusos cometidos por todos esses grupos: o crime organizado, milícias. O tribunal foi extremamente cauteloso, levou em conta todas as considerações feitas. Agora, filho feio não tem pai.
Imagino que essa sua avaliação reflita um pouco o que pensa o STF como um todo.
É muito fácil ficar fazendo jogo de culpados. Não foi o Supremo que inventou a crise do Rio de Janeiro, não é? A crise é de segurança pública. O Supremo entrou para tentar racionalizar um pouco as ações. Eu tenho muito cuidado também ao falar sobre isso, sobre a violência policial. Reconheço o trabalho dos indivíduos que integram as forças, que morrem, que têm todos os traumas. É o sujeito que sai de casa e não sabe se vai voltar. Temos de ter muito respeito e, por isso, não banalizamos. Em geral, para problemas complexos, a gente tem, às vezes, respostas simples, mas normalmente erradas. Se há uma coisa injusta, é dizer que o Tribunal não foi cauteloso. Pelo contrário, entre a liminar e a decisão, o tribunal discutiu muito e se fez realmente um processo de consenso, trazendo vários aspectos.
É preciso uma conversa com os outros Poderes?
Ah, com certeza. Até porque há muitas questões. Agora mesmo o Congresso acabou de votar um projeto de lei sobre um tratamento mais rigoroso em relação ao crime de organização criminosa. É fundamental que o Congresso atue nessa matéria. Esteve aqui recentemente o governador [de Goiás, Ronaldo] Caiado, que vem obtendo resultados bastante expressivos em relação à segurança pública. Disse, por exemplo, que adotou um isolamento muito duro em relação aos líderes de facções criminosas – exatamente o ponto que não parece estar sendo cumprido no Rio de Janeiro. Então, são questões que envolvem a participação de todos, inclusive do Judiciário. Houve uma ordem de transferência de um chefe de Organização, mas o Judiciário deu uma liminar para que ele não fosse transferido. Então, a responsabilidade é nossa. É fundamental que haja essa revisão para todo mundo.
A troca do ministro Luiz Fux para a Segunda Turma tem algum impacto sobre a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro?
Acho que há muita especulação. Isso é absolutamente normal. Certamente, ele fez uma avaliação, como já ocorreu no passado com outros colegas que saíram da nossa Turma.
Ele fez um cálculo para ficar menos isolado?
Não vou fazer juízo sobre isso. Certamente, a motivação é de foro íntimo. Mas não tem reflexo algum. As pessoas não estão fazendo alinhamento para ter uma maioria bolsonarista, nada disso. Se vocês olharem, caso por caso, não há alinhamento sequer entre o ministro André [Mendonça] e o ministro Kássio [Nunes Marques). Já falaram de tudo em relação à questão da inelegibilidade [do ex-presidente Jair Bolsonaro], que está na Primeira Turma, foi fixada na Primeira Turma. Nem ele teria esse tipo de intenção.
Há chance de ele continuar votando nos julgamentos relacionados à trama golpista?
Acho que não, mas isso também vai se resolver regimentalmente. Para tudo isso tem resposta, tem regimento. Se ele quisesse continuar votando lá, não teria saído.
Há uma decisão do Supremo que deixou os gastos com precatórios fora do arcabouço fiscal até 2026. Alguma chance de estender esse prazo?
Ao longo do tempo, se há uma linha mais ou menos contínua na orientação do Tribunal, é a sua lealdade a princípios de responsabilidade fiscal. O tribunal é muito consciente em relação a essa matéria porque sabe que um desarranjo, em matéria econômica e financeira, é trágico para todos. O próprio governo Bolsonaro contou muitas vezes com a compreensão do Tribunal. O [ex-ministro da Economia] Paulo Guedes reconhece isso. Mas depois, para o discurso deles, era interessante colocar o Tribunal como a “Geni”…
Por que o debate sobre a pejotização, relatado pelo senhor, não está sendo feito junto com a ação sobre o vínculo empregatício de trabalhadores de aplicativo [relatado por Fachin]?
Os casos que chegaram e que deram a ideia de reabrir a questão da pejotização tinham a ver com franquia, não tem nada a ver com Uber. Em alguns casos, a Justiça do Trabalho estava reconhecendo vínculos empregatícios. Franquias hoje são organizações mundiais.
Mas também existe uma crítica de que o caso das franquias é ainda mais específico e deveria ser julgado em outra ação.
É, mas aí a gente também vai fazer distinção. Muita gente argumenta corretamente que pode estar havendo abuso na pejotização. Se você colocar um contínuo como PJ, obviamente, você pode estar cometendo algum exagero. Me parece que tem, na verdade, muitos equívocos. O mercado de trabalho mudou muito. E mesmo os argumentos trazidos pelo governo estão equivocados. As pessoas colocam que isso está afetando a Previdência Social. Isso tem a ver com o problema do financiamento da seguridade como um todo. Então, o discurso de que é a pejotização que causa o problema da Previdência é o diagnóstico errado.
O Supremo pode, no caso da pejotização, alcançar um meio termo?
Vamos discutir e tentar contemplar a realidade. O problema é não ser dogmático aqui, não ter tabu. É muito curioso quando, às vezes, aparece aqui um sujeito que é diretor de banco, que assinou o seu próprio contrato PJ, mas depois que é demitido entra na Justiça do Trabalho. São essas contradições no sistema que nós vamos ter que resolver.
Mas se há um jogo ganha-ganha entre empregador e empregado, a Previdência não sai perdendo?
Aí o debate é como se modifica a própria legislação. Há um debate sobre o MEI, que foi pensado para criar uma estrutura jurídica e tirar essas pessoas da informalidade. Há críticas dizendo que o sujeito atinge (o teto) de receita do MEI e cria a MEI 2 para continuar com os benefícios. Este é um debate que nós vamos ter que fazer, mas veja, é muito mais legislativo do que judicial.
Ao que tudo indica, o advogado-geral da União (AGU), Jorge Messias, deve ser o escolhido do presidente Lula para a vaga aberta no Supremo com a saída do ministro Barroso. Alguns ministros do STF mostraram predileção pelo ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco…
A opinião que a gente eventualmente externa sobre a qualificação das pessoas não envolve uma exclusão de outros. E obviamente a escolha é do próprio presidente da República com o referendo, ou não, do Senado. Todos sabem do papel que teve o Pacheco durante todo esse período de enfrentamento que nós tivemos, e daí a alta consideração que lhe votamos. Isso não significa que nós não reconheçamos o papel importante de outros, inclusive do Jorge [Messias]. Ele é um importante interlocutor que nós temos. Nesse momento de crise que a gente tem vivido com os Estados Unidos, ele tem sido um interlocutor extremamente importante, atua muito bem no Supremo, e se for ele o escolhido, será também igualmente bem recebido.
Como tem visto o avanço dos diálogos entre o presidente Lula e o presidente americano Donald Trump para reverter o tarifaço e as sanções contra ministros?
São bons sinais. O importante é que o Brasil deu sinal de maturidade neste contexto. Não mudou uma vírgula na nossa linha, no nosso desiderato, e isso é reconhecido hoje mundialmente. Não só graças ao Tribunal, mas também ao governo. Às vezes a gente se esquece disso, mas é um apoio geral, do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.
Por que o senhor decidiu fazer uma edição do Fórum Jurídico de Lisboa em Buenos Aires?
A Argentina é nosso principal parceiro, é também um país de grande tradição jurídica, e havia uma crítica de que éramos muito eurocêntricos. O próprio Fórum de Lisboa hoje é um fórum internacional. Nós temos americanos, ingleses, espanhóis, todos os lugares têm participado do evento. Alguém já disse que é um Davos (fórum internacional anual de finanças, que é realizado nos Alpes Suíços).
Gilmarpalooza também, o senhor não fuja desse apelido.
Com muita honra, é muito bom. Havia duas críticas: a de que está faltando África e a outra questão era a América Latina. O debate sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia acendeu uma luz. Não é um fórum Brasil-Argentina, mas a ideia é fazer um diálogo no âmbito da América do Sul e, quiçá, na América Latina. Com isso, estamos cumprindo uma autocrítica. Essa coisa que também se fala do Brasil, de estar um pouco de costas para a América do Sul. Vamos estar atentos a isso e ampliando, intensificando esse diálogo, que é importante.
