O caso Brennand e o perigo da história única no processo penal
Nos últimos anos, a pauta do combate à violência contra a mulher — absolutamente legítima, necessária e inadiável — ganhou espaço expressivo no debate público, nos campos cultural, ético, político e social. Trata-se de uma conquista civilizatória que deve ser preservada e, mais ainda, aprofundada. É dever de todos, como sociedade, manter postura firme e intransigente diante de qualquer violação aos direitos das mulheres.
Um ponto sensível, entretanto, impõe reflexão: o risco de que esse discurso, ao ultrapassar os limites sociopolíticos de sua nobre vocação transformadora, venha a influenciar indevidamente a lógica decisória do sistema de justiça criminal, instaurando uma espécie de modelo único de interpretação — uma “história única”.
O conceito, tomado de empréstimo da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, revela o perigo de reduzir pessoas e situações complexas a um único enredo possível — uma narrativa totalizante que antecede os fatos e dispensa o contraditório. No âmbito do processo penal, a “história única” manifesta-se sempre que o julgador, ainda que movido por causas legítimas, passa a enxergar antes o símbolo do que a prova; sempre que o caso concreto deixa de ser um acontecimento a ser demonstrado e converte-se em fragmento de uma narrativa preexistente — aquela em que a vítima invariavelmente diz a verdade e ao acusado a verdade já não se concede.
O processo penal é espaço de reconstrução racional dos fatos, delimitados por uma acusação e demonstrados por provas objetivas. Sempre que a narrativa se antepõe à prova, o julgamento deixa de ser um exercício de razão para converter-se em gesto emblemático, guiado por percepções morais ou por sentimentos, e não por evidências.
Nossa experiência recente não deixa dúvida de que esse risco se materializou, com resistência indômita, nos casos envolvendo o empresário Thiago Brennand. Nos processos em que restou condenado, evidenciou-se que o sistema de justiça deixou de ser espaço de apuração para transformar-se em palco de mera confirmação de um enredo ideológico prévio. Reforçaram-se estereótipos que, ainda que partam de dados reais e dolorosos da sociedade, não traduziam as situações particulares submetidas a julgamento.
Nossa experiência demonstrou que o fenômeno da “história única” não é uma abstração teórica. Nos processos envolvendo Thiago Brennand, o que se viu foi o afastamento progressivo das narrativas originais das denunciantes para a construção judicial de hipóteses interpretativas jamais declaradas por elas.
Quando o relato emergia em contradição com a prova, não se questionava a narrativa da vítima: reinterpretavam-se os fatos por elas declarados para que o símbolo permanecesse intacto. Relações consensuais – devidamente provadas por vídeos localizados pela defesa – foram relidas, para se ter um “início consentido”, posteriormente transmutadas em “violentas”; contradições explícitas, convertidas em nuances emocionais; e provas sabidamente falsas — como fotografias de lesões de pessoas aleatórias, apresentadas como se retratassem a vítima — tiveram sua falsidade relativizada sob o pretexto de não comprometerem o núcleo fático, como se a fraude pudesse ser dissociada da própria credibilidade da narrativa da vítima.
Em cada caso, as decisões judiciais deixaram de refletir o conteúdo – da prova – dos autos para reafirmar uma coerência moral: a de que a vítima, por definição, não mentiria. Reconstruiu-se, assim, o discurso das denunciantes para ajustá-lo às provas — ainda que à custa da verdade real. É notório – e estarrecedor – o esforço de ressignificação judicial do discurso da vítima, destinado a preservar o arquétipo moral da verdade, mesmo em dissonância com as provas.
Essa inflexão marca a transição perigosa entre o julgamento jurídico e o julgamento ideológico: quando a prova perde seu lugar de critério, o processo converte-se em ritual de confirmação simbólica do discurso da vítima. É precisamente nesse ponto que a “história única” se instala — quando a narrativa antecede os fatos e os molda para manter-se crível, e a verdade deixa de ser buscada para ser preservada como dogma.
Ignorou-se, nos casos envolvendo Thiago Brennand — a nosso sentir, de forma paradoxal e grave — o próprio verbete que consagra a importância da palavra da vítima, pois moldou-se a narrativa às evidências, de modo que permanecesse incólume a coerência simbólica de quem a profere. Eis, em essência, o âmago do perigo da “história única” no processo penal: quando a palavra já não é confrontada pela prova, mas adaptada a ela, para que continue a ocupar o lugar de “verdade”.
Quando o discurso social legítimo — o combate à violência contra a mulher — torna-se a lente exclusiva de interpretação de qualquer caso, a individualidade do processo desaparece. O acusado deixa de ser julgado pelos fatos e passa a ser julgado como personagem de um enredo social prévio e imutável, na medida em que se tolera o ajuste da palavra da vítima à prova.
Não se trata, de modo algum, de enfraquecer o enfrentamento à violência de gênero. O alerta é outro: a justiça que condena sem prova, ainda que movida por uma causa justa, converte-se em instrumento de reafirmação moral e deixa de servir à verdade. A imparcialidade, nesse contexto, não é neutralidade — é coragem institucional.
Preservar o processo penal de pressões externas não significa proteger o acusado em detrimento da vítima; significa proteger a própria ideia de Justiça. É assegurar que nenhuma narrativa — por mais justa ou necessária que seja — possa anteceder a prova.
Um Judiciário independente, comprometido exclusivamente com os autos, é a mais alta expressão da civilização jurídica e a maior garantia de um julgamento justo. E somente julgamentos justos — baseados em fatos, não em “histórias únicas” — podem honrar, ao mesmo tempo, as vítimas, os acusados e a própria Justiça.
