Um gesto histórico na Catedral da Sé abre nova página da democracia brasileira
Cinquenta anos depois do assassinato de Vladimir Herzog, voltamos à Catedral da Sé — o mesmo templo onde, em 1975, milhares de pessoas romperam o medo e o silêncio para afirmar a verdade em meio à violência da ditadura. Naquele dia, a sociedade civil desafiou o autoritarismo. Neste 25 de outubro, o próprio Estado buscou se reconciliar com a história.

O ato inter-religioso de 2025 foi um acontecimento político e simbólico de enorme força. Entre as cerca de 2 mil pessoas presentes, algumas haviam estado ali 50 anos antes, desafiando a repressão para pedir justiça. Os irmãos Ivo e André Herzog, filhos de Vlado e Clarice, reviveram de mãos dadas emoções da infância precocemente interrompida pelo assassinato do pai. Alunos da Escola Municipal Vladimir Herzog depositaram flores brancas em frente ao altar da Catedral. “Na defesa da verdade, não houve lugar para a farsa do suicídio”, lembrou o vice-presidente Geraldo Alckmin. “Da mesma forma, por amor à liberdade, jamais haverá lugar para o nosso esquecimento”, completou.
Um dos momentos mais importantes do ato foi o pedido de perdão às vítimas da ditadura feito pela presidente do Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha. Em nome da Justiça Militar da União, ela pediu perdão a Vladimir Herzog e à sua família, a outras vítimas conhecidas e anônimas, e à sociedade brasileira como um todo. Reconheceu, diante de todos, os erros e as omissões cometidos pela própria instituição e pelas Forças Armadas durante o regime militar.
Foi um gesto histórico e profundamente transformador. Pela primeira vez em meio século, um representante da Justiça Militar admitiu publicamente responsabilidade no apoio à repressão e às injustiças cometidas em nome do Estado. O pedido foi além de uma mera formalidade. Soou como um rompimento com décadas de silêncio. A ministra falou como magistrada, mas sobretudo como cidadã, como brasileira, como representante de uma instituição que decidiu olhar para o espelho da história e reconhecer o que viu.
As palavras dela ecoaram dentro e fora da Catedral. A repercussão atravessou o país, ganhou as redes sociais e emocionou milhares de pessoas que acompanharam o ato à distância. Quem esteve ali sentiu o peso e a beleza daquele momento. Depois de tanto tempo, algo se moveu dentro de nós como sociedade.
Esse pedido de perdão representa uma virada de chave no processo de superação do nosso passado autoritário. É a Justiça Militar reconhecendo que errou. É um órgão do Estado falando pela primeira vez com humanidade e arrependimento. Esse gesto não apaga o sofrimento, mas o ressignifica. Ele dá sentido à luta das famílias que nunca desistiram, à coragem de quem enfrentou o terror de Estado e à persistência de tantos que acreditaram que um dia a verdade venceria.
O ato de 1975 marcou o início do fim da ditadura. Já o de 2025 pode marcar o nascimento de uma nova consciência democrática. O perdão pedido pela ministra do STM é um chamado para que o país avance na responsabilização dos crimes da ditadura e para que o Supremo Tribunal Federal retome o julgamento da Lei da Anistia, excluindo de seus benefícios os agentes do Estado que cometeram torturas, assassinatos e outras graves violações de direitos humanos.
Mas as palavras da ministra não se dirigem apenas ao acerto de contas com o passado. São também uma advertência atualíssima. A de que é preciso conter a violência e a impunidade no país. Não é admissível que uma operação policial como a ordenada pelo governador Cláudio Castro esta semana no Rio de Janeiro, supostamente dirigida contra uma facção criminosa, tenha resultado num massacre indiscriminado, com dezenas de inocentes mortos nas comunidades mais carentes da cidade.
Cinquenta anos depois, o legado de Vladimir Herzog continua a nos convocar à vigilância democrática. A memória de sua morte e o gesto de perdão de 2025 se unem como partes de um mesmo processo civilizatório: o de reconhecer, reparar e transformar. Não há democracia sem memória, nem justiça sem verdade. Ao olharmos para o passado com coragem, reafirmamos o compromisso com um futuro em que nenhuma violência de Estado, sob qualquer pretexto, possa se justificar.
