4 de novembro de 2025
Politica

Joga pedra na Justiça, inconformismo e revolta na França e no Brasil

Logo após a condenação, em março de 2025, de Marine Le Pen e outros dirigentes de seu partido, o RN, por desvio de recursos públicos, a reação foi explosiva: acusaram os juízes de “fazer política”. O argumento do “governo dos juízes” ressurgiu como uma velha estratégia de deslegitimação institucional. Em vez de discutir o mérito da decisão, questiona-se a própria legitimidade do Judiciário. A sentença incomoda não porque esteja errada, mas porque atinge poderosos — e interfere no processo eleitoral.

Marine Le Pen, líder de extrema direita, obteve votação expressiva na última eleição presidencial e pode ser forte candidata em 2027. A sentença, porém, além da condenação criminal, aplicou suspensão de direitos políticos por cinco anos, com execução imediata.

Desencadeou-se um violento discurso de ódio contra os três juízes do colegiado, com ofensas e ameaças. A maior indignação foi o fato de Le Pen ter se tornado inelegível. O próprio presidente Macron, seu adversário político, afirmou que a execução imediata “não é normal na democracia”.

Projetos de lei foram rapidamente apresentados ao Parlamento para suprimir a execução provisória. E o Tribunal que vai julgar o recurso, de forma incomum, anunciou que o fará bem antes das eleições.

A jurista Lauréline Fontaine, professora da Sorbonne, analisou esse fenômeno em artigo recente publicado na revista AOC – Analyse Opinion Critique (abril de 2025). Ela identifica três ideias falsas que alimentam esse tipo de ataque: a de que juízes freiam o exercício do poder; a de que não deveriam fazê-lo; e a de que o direito está separado da política.¹

No Brasil, esse discurso tem ecos nítidos. Sempre que o Supremo Tribunal Federal decide em desacordo com forças políticas, multiplicam-se acusações de ativismo, judicialização indevida ou interferência institucional. Na maior parte das vezes, ignora-se o fato de que essas decisões se baseiam em normas criadas pelos próprios legisladores — e que a função do juiz é justamente aplicá-las, inclusive contra interesses circunstanciais.

Estátua da Justiça em frente ao prédio do STF.
Estátua da Justiça em frente ao prédio do STF.

A crítica institucional ao Judiciário é legítima e saudável. O que está em jogo, no entanto, não é debate, mas desqualificação. O ataque ao juiz vira um recurso retórico para negar os freios e contrapesos que estruturam o Estado de direito. A ideia de que a política só é legítima quando livre de controles esvazia o sentido da democracia constitucional.

Fontaine mostra que, na maioria das vezes, o Judiciário reforça, e não impede, a ação estatal — frequentemente julgando a favor do poder, especialmente em matéria fiscal e econômica. Quando impõe limites, age por dever legal, com base em competências atribuídas pelo próprio sistema político. A separação entre os poderes não significa ausência de controle, mas sim interdependência e responsabilidade recíproca.

Negar a dimensão política do direito também serve a esse projeto. A ficção de que normas são neutras e técnicas ignora que toda regra jurídica nasce de escolhas políticas, morais e sociais. Aplicar o direito é, também, interpretar seu sentido. O juiz não substitui o legislador, mas o obriga a respeitar os próprios limites impostos pelo sistema.

A retórica anti-judiciário busca naturalizar o arbítrio. Quando se deslegitima o controle institucional, abre-se espaço para o autoritarismo travestido de vontade majoritária. A crítica aos juízes já não é mais sobre como julgam, mas sobre o fato de julgarem.

Como escreve Fontaine, o juiz é o pequeno grão de areia que impede a engrenagem do poder de passar por cima das regras que a própria política criou. Defendê-lo, quando julga com base na lei, é proteger o pacto democrático — especialmente quando incomoda.

¹ AOC — Analyse Opinion Critique, 3 de abril de 2025 – “Três ideias preconcebidas sobre as relações entre o direito e a política (e sobre o ‘governo dos juízes’)”

 

 

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