4 de novembro de 2025
Politica

‘Rateio de propinas’: juíza condena a 6 anos de prisão fiscal delatado na Máfia do ICMS

O auditor fiscal David Torres, da Secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento de São Paulo – ex-inspetor da Delegacia Regional Tributária de São Bernardo do Campo (DRT-12), na Grande São Paulo, foi condenado a 6 anos de reclusão em regime semiaberto por crime de concussão.

Ele é suspeito de cobrar propinas parceladas de uma empresa de materiais elétricos em 2012.

O Estadão pediu manifestação da defesa. No processo, ele negou as acusações.

Segundo a denúncia, o auditor – hoje aposentado – foi o “autor intelectual” da extorsão e “atuou de forma decisiva” na cobrança de propinas da empresa Ascael Materiais Elétricos.

O processo é um desdobramento das investigações da Máfia do ICMS em São Paulo. David Torres foi implicado na delação premiada do ex-auditor Ananias José do Nascimento que, em fevereiro deste ano, foi condenado a devolver R$ 3,8 milhões acrescidos ao seu patrimônio ilegalmente por meio do esquema de corrupção.

O Ministério Público de São Paulo afirma que, em conluio, Torres e Ananias ameaçaram a empresa com autuações de R$ 300 mil e cobraram R$ 100 mil para não multar a companhia. A investigação aponta que o valor efetivamente pago foi de R$ 60 mil, parcelados – ou R$ 130 mil em valores atualizados.

O dinheiro de propina foi entregue pessoalmente na Delegacia Regional Tributária de São Bernardo do Campo, em quatro parcelas de R$ 15 mil, de acordo com a denúncia. O contador da Ascael confessou em depoimento ter levado os pagamentos em espécie. O dono da empresa também confirmou os repasses.

Com a quebra do sigilo bancário de David Torres, os investigadores descobriram que ele fez depósitos fracionados em dinheiro vivo na própria conta no mesmo período em que as propinas foram pagas na Delegacia Tributária de São Bernardo.

Futebol society

A defesa alega que os depósitos são provenientes da exploração informal de uma quadra de futebol society, mas a versão não convenceu a juíza Sandra Regina Nostre Marques, da 1.ª Vara Criminal de São Bernardo, que condenou o auditor.

“A origem ilícita dos recursos não foi desmentida por qualquer elemento probatório em sentido contrário”, diz a sentença.

A juíza considerou ainda que, embora Ananias tenha sido o responsável pela execução da fiscalização e pela abordagem direta aos representantes da empresa, David Torres foi o responsável pela emissão da Ordem de Serviço Fiscal (OSF), o que na avaliação da magistrada comprova que ele tinha “pleno conhecimento e anuência quanto à finalidade ilícita da medida, consistindo em clara demonstração de que sua atuação se inseriu no contexto do ajuste espúrio”.

“Fica evidente a gravidade do comportamento do réu, que não apenas se beneficiou diretamente do esquema, mas também contribuiu para sua perpetuação, corroendo a confiança nas instituições públicas e comprometendo a integridade do serviço fiscal. A atuação de David Torres, a partir de sua posição hierárquica, facilitou a imposição de práticas ilegais e a extorsão de valores junto às empresas fiscalizadas”, criticou a juíza.

Como a decisão foi tomada na primeira instância, Torres pode recorrer para tentar reverter a condenação.

‘Ajuste perene’

Sandra Regina Nostre Marques destaca que, na ocasião de sua delação, o ex-auditor fiscal Ananias fez um longo relato acerca da cobrança de propina por fiscais de renda estaduais em fiscalizações efetuadas nas Delegacias Regionais Tributárias (DRTs) relacionadas à cobrança de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

O delator revelou que “nos casos em que se vislumbra possibilidade de acordo ilícito (concussões ou mesmo corrupção), o fiscal encarregado da análise de campo (ou da fiscalização em si) cuidava de promover a exigência ou o ajuste ilícito para que a fiscalização não resultasse na lavratura de AIIM (ou mesmo em valor elevado), cobrando propina que seria, em parte, repassada ao Inspetor Fiscal”.

Segundo ele, a propina era entregue “até mesmo ao Delegado Regional Tributário”. Ananias rotulou a rotina das propinas de “esquema de corrupção institucionalizado nas DRTS da Grande São Paulo”.

O delator sustentou também que o “ajuste era perene, cabendo aos superiores a manutenção do organograma, da posição dos comparsas na DRT, sustentando a ação dos agentes de campo (responsáveis pelas exigências nas fiscalizações), dando guarida e direcionando a ação a fiscais bem como os protegendo de eventuais reclamações”.

Sede da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, no centro da capital paulista.
Sede da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, no centro da capital paulista.

Achaques

As manobras da lavagem de capitais foram descobertas a partir da cautelar de quebra de sigilos fiscal e bancário de David Torres.

Foram identificados depósitos fracionados em período contemporâneo aos ”achaques” em prejuízo da Ascael.

Eram depósitos em dinheiro, sem lastro ou declaração de que tenham sido provenientes de outras atividades lícitas, como recebimento de aluguéis ou outras fontes de renda, “denotando, portanto, que se trata de valores ilícitos a partir de exigências indevidas praticadas em prejuízo da empresa em repasse operado por Ananias”, segundo o Ministério Público.

“Cumpre dizer que tais valores encontrados nas transações bancárias efetuadas por David Torres são incompatíveis com a atividade exercida pelo então funcionário público, consoante consta do aludido relatório de análise bancária e fiscal elaborado por este Gedec (grupo de promotores que combatem delitos econômicos)”, sustenta a Promotoria.

O rastreamento bancário mostrou quatro depósitos na conta de Torres de R$ 2.500 cada, realizados no dia 16 de outubro de 2012. O valor correspondia ao percentual que supostamente cabia ao então inspetor da Delegacia Tributária de São Bernardo, entregue por Ananias.

“O modus operandi da lavagem, portanto, restou facilmente evidenciado, vez que David Torres, munido de valores rateados entre os fiscais que participaram do achaque à empresa Ascael, realizou depósitos sem lastro em sua conta-corrente, consubstanciado em ao menos quatro depósitos de R$ 2.500 decorrente do ‘rateio da propina’, em período pouco anterior à lavratura do Auto de Infração”, destacou a Promotoria.

Para os promotores, em seu interrogatório, David Torres “apresentou versão pouco verossímil sobre os fatos, não ilidindo a sua responsabilidade”. Ele afirmou que os valores sob suspeita foram depositados em espécie e eram referentes à exploração de uma quadra localizada em Carapicuíba, em que desenvolvia atividades como futebol society, dentre outros.

À Justiça, o auditor de Rendas disse que recebia várias notas de R$ 50 pelo “consumo na cantina da quadra” e que as notas menores, de R$ 10 e R$ 20,00, “eram menos frequentes”.

O delator na Justiça

O delator Ananias José do Nascimento narrou em juízo que trabalhou como coordenador de equipe na Delegacia Regional Tributária. Disse que no primeiro escalão figurava o delegado regional tributário, dr. Biancalana, seguido dos inspetores – dentre eles David Torres -, do coordenador de equipe e dos fiscais de rendas.

Ananias asseverou que cada equipe tinha 10 a 12 fiscais. Ele mencionou que os coordenadores de equipe, esporadicamente, faziam diligências de campo.

Narrou também que, no caso da Ascael, a Diretoria Executiva elegeu o setor como “uma das prioridades de fiscalização, sendo que ele foi escolhido para a fiscalização a fim de que houvesse a concussão, sendo do conhecimento e com a anuência do inspetor fiscal, o qual realizava o controle de qualidade no relatório final do seu trabalho”.

Ananias esclareceu que Torres estava ciente do caso. Aduziu que havia “um parâmetro para a divisão de propina na Delegacia Regional Tributária de 25% em média para o inspetor e para o delegado”.

Disse que foi exigida da Ascael a quantia de R$ 60 mil, dividida em quatro parcelas de R$ 15 mil em dinheiro, sendo que uma delas foi direcionada à Inspetoria e para o delegado do órgão, “tendo sido o valor entregue pelo declarante a David Torres”.

Controle de qualidade

O delator alegou que o inspetor fazia o “controle de qualidade final do trabalho, de modo que o esquema não poderia funcionar sem sua participação, pois seria muito arriscado”.

O delator disse que compareceu à sede da empresa para a entrega da notificação dando notícia acerca do início de fiscalização, estabelecendo-se prazo para entrega de documentos na Delegacia Tributária.

Na ocasião, informou que havia “motivo” para a autuação da empresa. “Houve interesse da empresa no pagamento de propina para uma penalização a menor numa reunião realizada”, relatou.

Ananias esclareceu que essa reunião ocorreu em sua sala, entre ele e dois representantes da Ascael. Disse à Justiça não se recordar dos dias, mas alegou que era “costume que a primeira parcela fosse paga na data da entrega do auto de infração, com a certeza de que a fiscalização havia sido concluída”.

Explicou que o repasse da quantia devida à inspetoria normalmente ocorria de imediato. Informou que o pagamento da propina ocorreu na própria Delegacia, pelo contador da empresa, e que o repasse da cota de David Torres se deu na sala dele.

Afirmou, também, que apesar de realizado o pagamento da vantagem, a fiscalização precisava ser concluída com algum resultado e, por esse motivo, foi feita a autuação da Ascael, porém, em valor menor do que o efetivamente devido. Acrescentou que esse mesmo esquema se replicou em outros casos também relatados por ele ao Ministério Público.

“Disse que, na época, os depósitos acima de R$ 5 mil ou R$ 10 mil tinham que ser justificados e, ainda, demandavam fila, razão pela qual efetuava todos no caixa eletrônico”, destaca a Promotoria. Além disso, informou que a quadra era explorada por meio de uma associação e que não havia registro de CNPJ no município, ou seja, sem inscrição municipal, não havia recolhimento de ISS e toda movimentação financeira das atividades da quadra eram feitas por meio da conta pessoal dele próprio, David Torres.

Manobra de lavagem

“O relato apresentado não convence, estando claro que se tratou, na verdade, da manobra de lavagem utilizada para ocultar o recebimento de propina decorrente da concussão aplicada contra a vítima Ascael”, rechaçou a Promotoria.

 

 

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