7 de novembro de 2025
Politica

O circo e a toga: a contradição entre a lei e o espetáculo nas CPIs

O Brasil é um país de paradoxos jurídicos, onde teoria e a prática da lei se chocam com o espetáculo midiático. Essas contradições se manifestam especialmente nas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), minando autoridades do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional.

As CPIs são instrumentos vitais da democracia, investidas de poderes de polícia judiciária para apurar fatos de relevância nacional. Seu papel é fundamental. No entanto, a forma como alguns de seus membros têm conduzido as oitivas de investigados nos remete ao tempo em que o STF precisou intervir para reafirmar garantias basilares.

Refiro-me ao histórico julgamento da ADPF 444, quando se declarou a inconstitucionalidade da famigerada “condução coercitiva” de investigados para prestar depoimento. O fundamento é simples, mas poderoso: obrigar alguém a comparecer para, potencialmente, incriminar-se, viola o princípio da não autoincriminação, o direito ao silêncio e, em última análise, a própria dignidade da pessoa humana. A partir dessa decisão (cujos efeitos vincula todo o Judiciário), o investigado passou a ter a faculdade de comparecer ou não, um desdobramento lógico de seu direito de permanecer calado.

Ocorre que, nas CPIs, a regra da ADPF 444 parece ter sido convenientemente esquecida. Suspeitos são intimados e, quando buscam a proteção do Judiciário para não comparecer, encontram uma jurisprudência oscilante. Alguns Ministros do STF, atuando contrariamente ao que decidido pelo Plenário, concedem habeas corpus apenas para garantir o direito ao silêncio, mas mantêm a obrigatoriedade de comparecimento.

Todavia, essas decisões parecem equivocadas. Se o investigado tem o direito de não produzir prova contra si, e se o não comparecimento é a consequência natural da inconstitucionalidade da condução coercitiva (como decidido na ADPF 444), qual o propósito de obrigá-lo a sentar-se à mesa?

A resposta, infelizmente, reside no espetáculo.

Enquanto a maioria dos parlamentares age com a lisura que se espera do cargo, uma minoria barulhenta transforma a sessão em um verdadeiro palanque político, quando não em um “circo”. Exemplos recentes dão conta de que o investigado, obrigado a comparecer, torna-se um figurante, um alvo para discursos inflamados que pouco têm a ver com perguntas e muito com a humilhação pública, como no caso da CPMI do INSS.

Essa situação é duplamente nociva. Primeiro, porque desvirtua o papel da CPI, trocando a apuração dos fatos pela busca por likes e manchetes. Segundo, e mais grave, porque ignora a essência da investigação.

Uma investigação séria, seja em CPI ou em inquérito policial, deve se basear em provas documentais e no depoimento de testemunhas (estas sim, obrigadas a comparecer e a dizer a verdade), e não na humilhação televisionada daquele que opta por permanecer em silêncio – diligência inútil que apenas atrasa a investigação. O não comparecimento do investigado em nada esvaziaria o trabalho da Comissão, como alegam os defensores do status quo. Pelo contrário, forçaria a investigação a focar no que realmente importa: os fatos.

Por fim, vale lembrar que o legislador, atento aos excessos, tipificou o crime de abuso de autoridade na Lei n. 13.869/2019. O artigo 15, parágrafo único, inciso I, é cristalino: é crime insistir em perguntar àquele que já manifestou o desejo de exercer o direito ao silêncio.

Portanto, quando um parlamentar, ignorando a manifestação do investigado, insiste em discursos de achincalhe ou em perguntas constrangedoras, ele não está apenas violando uma garantia constitucional; ele está, potencialmente, cometendo um crime.

É tempo de o Judiciário alinhar a jurisprudência das CPIs ao que foi decidido na ADPF 444. A dignidade humana e o devido processo legal não podem ser suspensos em nome do espetáculo. O investigado não é obrigado a ser o palhaço quando a política se transforma em um circo. Sua ausência é, na verdade, um ato de defesa e um lembrete de que, em um Estado Democrático de Direito, a investigação se faz com provas, e não com constrangimento.

 

 

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