Pessoas com Deficiência: da exclusão e consumo forçado à economia da inclusão
Enquanto partes do mercado e do Estado negligenciam a acessibilidade e ainda operam na lógica do capacitismo estrutural, milhões de famílias brasileiras arcam com os custos de uma “economia da exclusão e do consumo forçado” enquanto não consolidamos uma vigorosa “economia da inclusão”.
Falar sobre consumo no Brasil é, inevitavelmente, falar sobre exclusão. E, nesse cenário, as pessoas com deficiência constituem um dos grupos historicamente mais excluídos, não apenas do consumo de mercado, mas do acesso a direitos fundamentais. Os números do CadÚnico são um retrato dessa realidade: mais de 6,4 milhões de pessoas com deficiência estão cadastradas, e 3,7 milhões (mais que a população do Uruguai) sobrevivem com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), de um salário mínimo. A deficiência, em nosso país, é um marcador social de pobreza estrutural e intergeracional, agravado quando interseccionado com outros marcadores como renda, gênero, raça e local de residência.
Essa exclusão histórica se manifesta no que se pode chamar de “não-consumo estrutural”. Trata-se da privação do transporte, da educação, do trabalho, do lazer, da cultura, do direito à cidade, da reabilitação. Assim, por exemplo, uma criança com deficiência sem acesso à educação fica privada de tantos outros direitos, inclusive ao direito essencial ao trabalho e à renda no futuro. Como bem lembra o economista Amartya Sen, a pobreza é a falta de liberdades substantivas. Ao negar o acesso ao consumo de produtos, serviços e direitos, produzimos uma cidadania meramente formal e enganosa.
Para piorar, ao lado do não-consumo, convivemos com formas aviltantes de “consumo forçado”, na forma dos gastos impostos pela necessidade: medicamentos, terapias, adaptações, cuidadores, tecnologias assistivas e similares. Relatório da OMS e do Banco Mundial (2011) mostra que os custos extras da deficiência consomem parte substantiva da renda familiar (no Reino Unido, por exemplo, esse consumo variou entre 11% e 69%, inversamente proporcional à renda familiar). No Brasil, essa conta é ainda mais perversa, dada a baixa renda estrutural e a falta de cobertura universal em serviços essenciais. O ciclo da exclusão é perverso: a pobreza aumenta a proporção da renda consumida forçosamente que, por sua vez, realimenta a pobreza, ao mesmo tempo em que aumenta a possibilidade de incorporação de novas deficiências.
Esse consumo forçado gera uma economia invisível, sustentada majoritariamente por mulheres – mães, irmãs, avós e cuidadoras que não podem ter profissões – e é movimentada por um ecossistema informal de terapeutas, pequenas oficinas e cuidadores. Uma economia que não entra no PIB e é ignorada pela sociologia do consumo tradicional. As famílias pagam duas vezes: com o dinheiro que não têm e com o tempo que lhes é sequestrado. Esse trabalho de cuidados não é contabilizado, nem reconhecido, muito menos remunerado.
No entanto, é possível e urgente inverter essa lógica. A saída está na transição de uma “economia da exclusão” para uma “economia da inclusão”. O “Novo Viver Sem Limite”, lançado em 2023 pelo governo federal, é um movimento nessa direção, ao reconhecer que políticas de acessibilidade geram valor econômico e vida autônoma. Que investir nas pessoas com deficiência é enfrentar esse custo secular de exclusão e consumos forçados. Este é o “custo Brasil” que estamos enfrentando: ao investirmos nas pessoas com deficiência, investimos em todas as pessoas, em toda a sociedade.
Cada cadeira de rodas, cada software de comunicação, cada rampa, calçada e transporte acessível, cada escola inclusiva, cada terapia ou tratamento de reabilitação tem, por trás, uma cadeia criativa e produtiva: são engenheiros, arquitetos, designers, terapeutas, desenvolvedores, pesquisadores, cuidadores, enfim, são centenas, milhares de profissionais que já estão trabalhando cotidianamente nessa economia. Países como Canadá, China e Suécia já tratam a economia da acessibilidade como setor estratégico de inovação. No Brasil, iniciativas como a Rede Nacional de Pesquisa em Tecnologia Assistiva e a Rede de Centros Especializados de Reabilitação são sementes promissoras. Mas precisamos mais: avançar na universalização dos serviços essenciais e especializados para aliviar as famílias e pessoas com deficiência em seus consumos forçados.
Alocar recursos em inclusão é investir em desenvolvimento com liberdade e autonomia. É reconhecer que cuidar e incluir geram muito valor, que a deficiência é um fato da vida social e que a acessibilidade é um investimento em cidadania substantiva e em economia real e oportunidades. Precisamos de uma mudança de paradigma que considere a economia da inclusão como dinamizadora do desenvolvimento do nosso país. Tornar visível essa economia que já pulsa nas casas, oficinas, escolas, clínicas e centros de pesquisa do Brasil é um movimento necessário para uma gramática de justiça social que não apenas inclua, mas que também aprenda e prospere com a inclusão.
