6 de novembro de 2025
Politica

As facções do crime são bactérias

Enquanto a população não compreende como pode ser tão difícil enfrentar as facções criminosas, as autoridades públicas se mostram ainda mais perplexas. O Brasil inteiro debate a operação no Rio de Janeiro a partir de vieses ideológicos e opiniões pessoais, destinadas a não chegar a nenhum resultado prático.

Claro, pois legisladores entregam às polícias uma lista de todas as condutas a serem punidas. Tudo embrulhado no mesmo saco, o Código Penal. Acontece que homicídios, crimes patrimoniais e tráfico já são, por si mesmos, inteiramente diferentes uns dos outros, exigindo abordagens específicas de repressão, que dirá o crime organizado.

Um criminoso pode se sentir tentado a eliminar quem o está investigando, mas você pode matar um policial, mas não a Polícia. As forças de segurança pública não são somente um policial ao lado do outro, são muito mais que apenas a soma de seus integrantes. Elas têm mecanismos internos funcionando permanentemente para recrutamento, formação e aperfeiçoamento, promoção hierárquica, solução infrações e de conflitos de interesses ou de opiniões etc.

A Igreja Católica, provavelmente é a organização mais antiga ainda existindo. Obviamente nenhum de seus integrantes originais está vivo. E, ao longo de 2.000 anos, teve que superar crises e se adaptar a novos países, novas tecnologias, mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas. Portanto, não é a mesma desde o seu surgimento, ainda que possa haver mantido a sua essência.

Cerca de 50 anos atrás, os biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana cunharam uma expressão para explicar de maneira fácil como funcionam os seres vivos: desde o mais simples ao mais complexo, todos são sistemas autopoiéticos. O exemplo das bactérias será particularmente didático.

Bactérias interagem com o ambiente externo, é claro, mas elas produzem, reproduzem, sustentam, regeneram e adaptam a si mesmas por mecanismos internos. Estas duas últimas características nos interessam muito. Se a bactéria é atacada, mas não destruída, ela mesma providencia sua recomposição. E cada vez que isso acontece, ela tende a se adaptar para sobreviver em um meio ambiente modificado. Daí surgem as chamadas “superbactérias”, resistentes a um ou mais dos antibióticos disponíveis. O que não as mata as fortalece.

Organizações criminosas também são sistemas autopoiéticos. Não foram criadas por forças externas e não dependem delas para se manter, se reproduzir e aumentar de tamanho, nem para se regenerar após algum ataque ou para se adaptar a tudo o que lhe for hostil na sociedade. Elas também possuem superestruturas internas que as fazem diferentes da soma de seus integrantes atuais. Tendem a continuar existindo depois que nenhum de seus fundadores está presente. Cada vez que elas sofrem uma ação policial tradicional, recompõem-se imediatamente e aprendem novos truques contra as próximas operações.

Facções criminosas não podem ser simplesmente esmagadas, por maior que seja o rolo compressor. Operações policiais, prisões e julgamentos ainda serão úteis, mas como parte de estratégias muito maiores, não como um fim em si mesmo. Falando muito genericamente, as organizações criminosas são imunes a confrontos diretos e só podem ser abordadas de maneira oblíqua, ou seja, por estratégias indiretas que fragilizem suas superestruturas, sendo pouco importante atingir os integrantes. E, mais, por estratégias individualizadas, porque cada organização é diferente da outra.

Por exemplo, as facções não surgiram propriamente como organizações criminosas, mas como espécies de “sindicatos” de presidiários, com a finalidade de proteção mútua contra outros presos e autoridades públicas abusivas. Só com o tempo é que ganharam as ruas e começaram a praticar o tráfico e outros crimes. São como plantas de vaso: seu tronco e seus galhos podem estar fora, mas suas raízes ainda estão nas cadeias. E quem não manda no cárcere não manda nas ruas. Se quebrarem os vasos, isto é, se o sistema carcerário sofrer uma reforma radical que permita ao Estado retomar o controle do que acontece lá dentro, as facções murcharão sozinhas. Apenas o PCC talvez consiga sobreviver, já que cresceu muito e se diversificou. Nenhuma outra.

Em resumo, será indispensável entender a diferença entre combater o criminoso, o crime e a organização criminosa. A vida terminou ou ficou muito difícil para dezenas de traficantes do complexo do Alemão, mas apenas obtivemos nossa vingança pública. Esse tipo de operação, bem ou mal-sucedida, não afeta a “cadeia econômica” do tráfico e muito menos a organização criminosa traficante em si mesma. O crime organizado é um fenômeno social, político, econômico e psicológico inteiramente diferente da violência individual ou mesmo de quadrilhas tradicionais, funcionando realmente como um organismo vivo, não como um amontoado de bandidos. Combatê-lo exige estratégias indiretas nas quais confrontos policiais teriam um papel secundário e episódico.

 

 

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