Tudo como dantes
Este velho ditado português – Tudo como dantes no quartel de Abrantes – é de atualidade quando se apreciam os momentos últimos da realidade jurídica e política brasileira, em face da relação entre a sociedade e o seu Supremo Tribunal Federal.
Há poucos dias a presidência deixou de pertencer a um eminente Ministro que vai procurar a paz de espírito entre brâmanes. Assumiu o elevado cargo, em 29 de setembro, um outro que sugeria ter nos pés a terra roxa e produtiva de seu Estado. Este fala baixo e fez promessa de deixar a política aos políticos e as questões contenciosas aos juízes que presidiria.
Entusiasmados com isso, numerosos juristas de envergadura, apoiados por ilustre cientistas políticos, se entusiasmaram com a suposta contenção do Tribunal. Supuseram que se voltaria para a normalidade da função de verificar a compatibilidade de atos ou normas em face das prescrições das Lei Suprema.
Esqueceram-se estes juristas benevolentes que o novo Presidente sempre votou apoiando os abusos que denunciam, como censura e outros atos contrários à Constituição. Fácil é demonstrá-lo, consultando as decisões do TSE, que presidiu, e do STF que agora preside.
Mas a ilusão da mudança durou pouquíssimos dias. Em declarações feitas logo depois da posse, o novo Presidente afirma alto e bom som que não admitirá que a lei que regulará o estatuto dos servidores públicos se toque no Judiciário. Claro está que, como todos sabem, tal lei ameaça os privilégios dos integrantes do Poder que encabeça.
Com essa declaração, demonstra o que os que têm olhos para ver já estão cansados de ver.
Ou seja, que o STF se propõe a continuar ditando o que o Legislativo pode fazer, ou não pode, ao legislar, em matéria não de constitucionalidade, mas de conveniência, o que fica no campo da política. Esta que prometera deixar ao Legislativo e não usurpar pelo Tribunal.
Torna-se claro que o novo Presidente não se preocupa em que o Tribunal se restrinja ao que é de sua função – a guarda da Constituição. Quer mantê-lo como um super-poder que se põe acima do Legislativo e do Executivo, quando bem entende. Não se restrinja – insista-se – à apreciação da constitucionalidade mas aprecie a conveniência nos exames dos atos que apenas teria de contrastar com a Constituição.
Nada disto é novo. Há muito um grande jurista que enobrece a Suprema Corte já disse que o STF tem um “poder constituinte permanente”, assim pode a qualquer momento alterar a norma ou manipulá-la no sentido que lhe aprouver. Como é próprio de uma “nova” Constituição flexível contrariamente ao estabelecido em 1988.
A perspectiva, portanto, levando em conta o que foi apontado é que tudo continuará como dantes. Ou seja, o STF apreciará as leis segundo lhe convém ou pensa convir ao interesse geral ou à defesa da democracia, como sempre alega. Ou dará efeitos gerais às suas decisões, mesmo que a jurisprudência não o permita, quando não o pode fazer de acordo com a Constituição. Isto quando não “legisla” a pretexto de inconstitucionalidade, como fez estabelecendo normas para a disciplina das plataformas.
Assim, sempre dará a última palavra sobre qualquer questão sujeita à apreciação, seja emanada do Legislativo ou do Executivo e até no que tange a direitos fundamentais. Admitirá censura, processos secretos, investigações intermináveis, etc.,
Não vivemos, certamente, numa ditadura, mas sim numa juristocracia.
Ela teve como proclamação uma Portaria, não um Ato Institucional. Este ensejou outros, sempre editados em “defesa da democracia”.
A partir dessa Portaria a última palavra sobre os destinos nacionais é do grupo de juristocratas não eleitos. O que mostra, por si só, que não vivemos numa democracia e sim numa aristocracia ou oligarquia. Com efeito, segundo expressamente está na Constituição de 1988, o povo se governa, ou diretamente ou por meio de representantes eleitos, nunca por não eleitos (art. 1º, parágrafo único).
O STF, em nome de tal defesa, arrogou-se o poder de ignorar os limites da Constituição e dizer a última palavra sobre qualquer tema.
Ora, quem pode tudo é evidentemente o soberano. Não é preciso citar Carl Schmitt para explicá-lo.
E o que tem feito desde 2019 é de conhecimento público. Desde a Portaria mencionada, do Supremo emanam – porque se o todo não determina, consente – expressamente, censuras que atentam contra direitos fundamentais, pois a liberdade de expressão é consagrada nas Declarações de Direitos de nossa Constituição, da Declaração da América e da Declaração Universal. Prisões arbitrárias e outras mil infrações já descritas. Fora atos secretos que ocultam perseguição a lideranças políticas. Mesmo contas bancárias são bloqueadas (que ironia!), embora não vigore no Brasil a lei Magnitsky.
Afora ADPFs que pretendem disciplinar ações policiais ou proteger o ambiente ou idealizar políticas púbicas. Ou fixar prazos para que o legislador legisle.
Só se pode crer na normalização da atuação do STF – a pretendida “contenção” – e com ela a da governança brasileira, quando um fato ocorrer: A revogação dos Inquéritos do “fim do mundo”.
Faça-o o novo Presidente do STF e o Brasil voltará a ser uma democracia.
É isto certamente o parecer que receberá da comissão de eminentes juristas que, para assessorá-lo, nomeou. Se não o fizerem, talvez não sejam constitucionalistas.
É duvidoso, todavia, que isso suceda em período que a vista alcance.
Montesquieu ensinou que o homem que tem poder vai até onde encontra limites. Mas provavelmente numa reedição do Espírito das Leis, o Mestre acrescentaria: Quem superou os limites e veio a possuir o poder absoluto, jamais aceita sujeitar-se a qualquer limite. Talvez por autopreservação?
