Cofre aberto, celular resetado: PF vê ‘contrainteligência’ de governador
Alvos de busca da Polícia Federal nesta quarta-feira, 12, o governador afastado do Tocantins, Wanderley Barbosa (Republicanos), e a primeira-dama, Karynne Sotero, são suspeitos de terem utilizado técnicas de ‘contrainteligência’ para despistar os federais quando abandonaram às pressas a residência oficial do casal no dia 3 de setembro. Na ocasião, eles entraram na mira da fase 2 da Operação Fames-19 – investigação sobre suposto desvio de verbas para aquisição de cestas básicas no auge da pandemia da Covid-19.
Nesta quarta, 12, o casal sofreu uma nova visita da PF no âmbito da Operação Nêmesis, desdobramento da Fames-19.

A chegada da PF foi motivada pelo fato de que, em setembro, ao saírem da residência apressadamente, Wanderley e Karynne deixaram um cofre aberto e vazio, um aparelho celular resetado, luzes e televisão ligadas, além de uma refeição pronta para ser consumida sobre uma mesa no quarto da enteada do governador.
Wanderley foi afastado em setembro por suspeita de corrupção. Ele nega envolvimento com o esquema que teria sido instalado em sua gestão para desvio do dinheiro das cestas básicas. A primeira-dama e deputados da Assembleia Legislativa do Tocantins também são investigados.
A defesa diz que “recebeu com estranheza mais uma operação da Polícia Federal no momento em que aumenta a expectativa pelo julgamento do habeas corpus que pode devolvê-lo ao cargo”.
Os mandados de busca e apreensão desta quarta-feira, 12, na Operação Nêmesis, foram autorizados pelo ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça. Os endereços inspecionados pela PF ficam em Palmas e Santa Tereza do Tocantins.
Versões conflitantes
Dois policiais militares responsáveis pela segurança da residência oficial do governador apresentaram, segundo a PF, versões conflitantes sobre a saída do casal naquele dia de setembro, “com o aparente escopo de dissimular sua destinação”, diz relatório da PF, ao qual o Estadão teve acesso.
Um dos policiais interrogados que fazia a vigilância do local no momento que os federais entraram afirmou que “somente a filha do casal estava na residência”. “Ao ingressar, foi verificado que seu quarto estava vazio. Questionado sobre a última vez que tinha visto o governador, alegou que somente o avistou na manhã do dia anterior, e que depois não o viu mais, não podendo indicar seu paradeiro”, descreve o documento sobre o PM.
O segundo policial militar que estava no local afirmou que não sabia quantas pessoas se encontravam na residência. “Ao ser indagado sobre a última vez em que viu o governador, salientou que fora no dia anterior, por volta das 22h, em uma sessão de fisioterapia, o que contradiz as informações prestadas por seu colega”, diz o mandado desta quarta.
Os sinais de que a família de Wanderley teria saído repentinamente da casa são descritos como “embaraços à investigação” pela PF.
“No quarto da filha dos alvos, estranhamente, a luz estava acesa, a televisão estava ligada e, conforme já salientado, uma refeição intacta sobre a mesa chamou a atenção dos policiais”, continua o documento.

A investigação suspeita que o governador afastado tinha conhecimento prévio da diligência antes do dia 3 de setembro. “Muito provavelmente, tomaram conhecimento da ordem antes mesmo de seu cumprimento, atuando ativamente para subtrair documentos, equipamentos eletrônicos e, possivelmente, dinheiro em espécie para frustrar o escopo das investigações”, afirmam os federais.
Sem rastros
Durante as buscas que antecederam o afastamento do governador, a PF identificou no quarto de Wanderley e Karynne um celular carregando em cima de um gaveteiro. “Ao analisar o aparelho, foi constatado que o celular havia sido resetado para o modo inicial de fábrica, em uma clara tentativa de apagar eventuais elementos de convicção nele existentes”, diz a investigação.

Partindo para a cozinha da residência, os federais encontraram um cofre oculto, que foi aberto e esvaziado pelo casal antes da chegada da equipe policial. Para a PF, o casal tomou “conhecimento da diligência e atuou para eliminar qualquer elemento que pudesse ser apreendido pelas autoridades”.

Salve-se quem puder
Durante a análise do circuito fechado de monitoramento da residência, a PF apurou que às 22h20 do dia 2 de setembro Wanderlei “não demonstrava interesse em se deslocar”.
“Mensagens trocadas com o deputado federal Alexandre Guimarães (MDB) mostraram que o governador marcou um café para a manhã do dia 3 de setembro e enviou a localização da residência onde estava. O conteúdo indicou que ele pretendia pernoitar no imóvel urbano e não na Fazenda Santa Helena, como havia declarado à Polícia Federal”, aponta o documento. O deputado não é investigado.

As imagens do circuito de segurança registraram movimentações relevantes às 23h07, com a chegada à residência do advogado Thomas Jefferson Gonçalves Teixeira, então secretário de Parcerias e Investimentos do governo.
Thomas Jefferson é advogado e sócio de Rerison Antônio Castro Leite, filho do governador, no escritório Castro & Gonçalves Advogados Associados.
Thomas Jefferson também foi alvo de buscas nesta quarta-feira, 12.

A polícia ainda apontou que Thomas foi na casa do governador à tarde. Após essa visita, Thomas retornou ao imóvel do governador por volta das 23h07, “em horário considerado inusual, o que indica possível urgência no contato”, segundo a PF.
Mensagens trocadas entre Ysabela Sotero Lustosa, filha de Karynne, e a primeira-dama, mostram que a moça comunicou a chegada de Thomas e “relatou incômodo, o que reforça o caráter inesperado da visita”.
Mesmo tendo contato direto com o governador e com Karynne Sotero, Thomas não enviou mensagens nem fez ligações para avisar que estava a caminho, o que, segundo a PF, pode indicar tentativa de evitar rastros digitais.
As imagens revelaram que ele esperou 17 minutos para ser atendido, “evidenciando que sua presença não era aguardada pelo governador naquele exato momento”, assinala a investigação.
“Após breve conversa com o governador, o advogado deixou a residência, nela permanecendo não mais do que 7 minutos”, destaca a PF.
Dez minutos após a saída de Thomas, a família do governador deixou a residência às pressas. Segundo os federais, as imagens do circuito de monitoramento revelaram a participação ativa de policiais militares responsáveis pela segurança do governador em manobras para “despistar e encobrir a movimentação” na noite anterior à operação.
Entre os agentes, estava o policial militar Irineu Carvalho Amorim, que declarou ter visto o governador apenas na manhã do dia anterior, contradizendo o que as câmeras registraram. Para a PF, o relato falso teve o objetivo de “ocultar a saída de Wanderley Barbosa” e seu paradeiro. Irineu também foi alvo de busca e apreensão nesta quarta.
“É sabido que a segurança do governador Wanderley é bastante efetiva e presente, sendo certo que seus deslocamentos ocorrem por meio de comboios de viaturas. Dessa maneira, o deslocamento realizado em período noturno, sozinho, com o joelho lesionado, diante de um dos policiais militares responsáveis pela segurança de sua residência indicam, com razoável certeza, que a chefia de segurança do governador estava ciente e concorreu para a manobra furtiva realizada durante a madrugada”, crava a investigação.
Rumo incerto
O histórico de conexões do celular de Wanderley analisado pela PF confirmou o deslocamento repentino do governador. O aparelho se desconectou da rede ‘Wi-Fi KARYNNE_2.4’, às 23h49, e passou a registrar conexão com a rede ‘Alfa 103’, gerada pela antena Starlink instalada no veículo oficial usado pelo casal.
Segundo a PF, o governador, sua esposa e a filha deixaram o imóvel às 23h37 e seguiram um rumo incerto, que teria como destino final a Fazenda Santa Helena.
As apurações indicam que o grupo parou em outro endereço antes de chegar à propriedade rural, onde deixaram Ysabela e objetos pessoais.
Na manhã seguinte, 3 de setembro, equipes da PF cumpriram mandado de busca e apreensão na Fazenda Santa Helena, em Aparecida do Rio Negro (TO). Wanderlei Barbosa e Karynne Sotero foram encontrados no local.
Os policiais relataram que precisaram arrombar as correntes da porteira, mas uma das portas da casa estava aberta, com as chaves do lado de fora. O casal já estava acordado, vestido com ‘roupas de uso diário’. Alegaram que haviam sido alertados minutos antes por um ‘chefe de segurança’ sobre a chegada da PF.
“Foi destacado pela autoridade policial o fato de o casal já estar acordado e vestido com roupas de uso diário, sem as feições normalmente encontradas em quem é despertado repentinamente. Questionados, os investigados informaram que haviam recebido minutos antes uma ligação do chefe de segurança da residência do Governador, informando acerca da chegada dos policiais, motivo pelo qual já estavam despertos”, descreve o relatório.
Durante as buscas, os agentes encontraram no veículo oficial que empreendeu fuga diversas roupas embaladas de lavanderia, algumas caídas no chão, o que reforçou a hipótese de “evasão às pressas” para a fazenda.

COM A PALAVRA, A DEFESA DO GOVERNADOR
“O governador Wanderlei Barbosa recebeu com estranheza mais uma operação da Polícia Federal no momento em que aumenta a expectativa pelo julgamento do Habeas Corpus que pode devolvê-lo ao cargo.
Ao mesmo tempo, reitera a sua disponibilidade para colaborar com as investigações e mantém a sua confiança na justiça e nas instituições.”
COM A PALAVRA, OUTROS CITADOS
A reportagem do Estadão busca contato com as defesas de todos os citados na investigação. O espaço está aberto para manifestação (rayssa.motta@estadao.com; fausto.macedo@estadao.com; felipe.paula@estadao.com).
