12 de novembro de 2025
Politica

Doleiro da Oscar Freire chefiou ‘sistema bancário’ a serviço de ‘sócio dos tribunais’, diz PF

O suposto esquema de venda de sentenças que teria se alojado em alguns gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça e em Cortes estaduais contava com um ‘sistema bancário paralelo’, comandado pelo doleiro Surrey Ibrahim Mohamad Youssef. Relatório da Polícia Federal na Operação Sisamnes – investigação sobre comércio de sentenças em tribunais -, indica que Surrey tratava de operações ilícitas diretamente com o advogado Roberto Zampieri – proeminente figura do ‘mercado de decisões judiciais’, assassinado em dezembro de 2023, em Cuiabá.

A defesa do doleiro, conduzida pelo advogado Anivaldo dos Anjos Filho, afirmou ao Estadão que Surrey é “empresário do ramo de turismo e câmbio, com empresa regularmente constituída e em funcionamento, aberta ao público, há mais de 30 anos, atuando de forma lícita e sob fiscalização dos órgãos competentes”. (Leia abaixo a íntegra da manifestação da defesa)

PF destaca que Surrey 'viabilizava a circulação clandestina dos valores ilícitos'
PF destaca que Surrey ‘viabilizava a circulação clandestina dos valores ilícitos’

A suspeita sobre os serviços do doleiro ocupa um capítulo do relatório da Polícia Federal no âmbito da Operação Sisamnes, ao qual o Estadão teve acesso.

Dono de uma casa de câmbio na Rua Oscar Freire há 29 anos – charmosa travessa dos Jardins, em São Paulo – a atuação de Surrey, segundo a PF, envolvia “entregas de valores em espécie, uso de senhas, intermediação de terceiros e câmbio paralelo”. Investigadores suspeitam que magistrados teriam recebido propinas em dólares repassados a Zampieri, que carregava a fama de ‘sócio dos tribunais’.

À reportagem do Estadão, Surrey afirmou que sua principal atuação não é como doleiro, mas como ‘psicólogo e palestrante’. Ele também foi apresentador de um programa de TV, onde entrevistava celebridades e “pessoas da alta sociedade” paulistana, diz. Nas redes sociais, Surrey publica diariamente mensagens motivacionais.

Fachada da casa de câmbio de Surrey Youssef na Oscar Freire
Fachada da casa de câmbio de Surrey Youssef na Oscar Freire

O documento da PF destaca que Surrey, “inserido na sistemática de lavagem, revelado a partir das mensagens trocadas com Zampieri, era responsável por operacionalizar o sistema bancário paralelo que viabilizava a circulação clandestina dos valores ilícitos”. O relatório é subscrito pelo delegado Marco Bontempo, que atua na área mais sensível da PF, tocando inquéritos de competência dos tribunais superiores.

As hipóteses criminais apuradas pela PF estão sob condução sigilosa do ministro Cristiano Zanin Martins no Supremo Tribunal Federal.

Encomenda secreta

Os investigadores acreditam que o dinheiro movimentado pelo doleiro tinha origem na venda de sentenças que teria proliferado nos tribunais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, envolvendo desembargadores e também assessores de ministros do STJ.

Zampieri era muito próximo de magistrados, a quem brindou com propinas em dinheiro, relógios e até barras de ouro, segundo a PF.

Em conversas no WhatsApp no dia 23 de março de 2023, o advogado pediu o endereço do escritório de Surrey para que um ‘emissário’ buscasse uma encomenda.

“Waldemar Conrado. Essa é a pessoa que deve procurar o senhor”, orientou Zampieri.

“Sabe o valor que me deixaram lá?”, perguntou o doleiro, cheio de cautelas. “A gente deu um código. Pega o código, dá pra pessoa, tá com nosso amigo. Segurança, né? Vai que chega outra pessoa.”

Participação do doleiro, em parceria com Zampieri, 'impulsionava e mantinha o esquema criminoso em funcionamento', diz a PF
Participação do doleiro, em parceria com Zampieri, ‘impulsionava e mantinha o esquema criminoso em funcionamento’, diz a PF

O doleiro, então, encaminhou duas fotos a Zampieri: uma do RG de Waldemar Conrado, confirmando a identidade do emissário, e outra do enviado conversando com um terceiro no escritório de Surrey.

“Pela compatibilidade das imagens, descobriu-se que o possível intermediador na operação financeira era o advogado Ussiel Tavares da Silva Filho”, suspeita a PF.

“A análise das conversas entre Roberto Zampieri e Ussiel Tavares revela tratativas financeiras associadas a processos judiciais em trâmite no Tribunal de Justiça do Mato Grosso e no Superior Tribunal de Justiça”, indica o delegado Bontempo.

Comunicações envolvendo Waldemar Conrado 'mantêm relação direta com diálogos paralelos entre Zampieri e Surrey', assinala investigação
Comunicações envolvendo Waldemar Conrado ‘mantêm relação direta com diálogos paralelos entre Zampieri e Surrey’, assinala investigação

No mesmo dia, Zampieri tratou da ‘encomenda’ com Ussiel – supostamente responsável pelo envio de Waldemar ao escritório de Surrey.

“Oi, tem uma pessoa lá no escritório dele, tentando entrar. Será que já é seu emissário?”, perguntou Zampieri a Ussiel.

“Procura quem lá? Puxa vida, fala o nome só”, questionou Ussiel, em referência a quem Waldemar deveria fazer contato.

“Ele já está no aguardo. Pediu o código”, confirmou o advogado.

“Essas comunicações mantêm relação direta com diálogos paralelos entre Zampieri e Surrey, indicando que as operações financeiras e os repasses discutidos com Ussiel integravam o mesmo fluxo ilícito operacionalizado por Surrey”, diz a investigação.

A PF frisa no relatório que durante o cumprimento de busca e apreensão nas dependências da casa de câmbio da Oscar Freire, a equipe policial localizou uma mochila contendo “elevada quantia em espécie, o que confirma que a engrenagem financeira se encontrava em pleno funcionamento”.

Malotes encontrados na casa de câmbio de Surrey Ibrahim Youssef 'confirmam que a engrenagem financeira se encontrava em pleno funcionamento', diz PF
Malotes encontrados na casa de câmbio de Surrey Ibrahim Youssef ‘confirmam que a engrenagem financeira se encontrava em pleno funcionamento’, diz PF

“Conversei com o amigo de SP no sábado, e ele disse que fica com os dólares e nos envia em reais na nossa conta”, disse Zampieri a Ussiel seis dias depois da retirada da ‘encomenda’, no que a PF entende que o ‘amigo’ seria o doleiro Surrey.

O Estadão busca contato com as defesas de Waldemar e Ussiel. O espaço está aberto para manifestações.

‘Saldo do cliente’

Para os investigadores, há “indícios consistentes de um arranjo voltado à compra de decisões judiciais, estruturado com a participação de doleiro responsável pela realização de repasses em espécie, pela condução de compensações financeiras e pela efetivação de remessas ao exterior, impulsionando e mantendo em funcionamento o esquema criminoso”.

Mensagens encontradas no celular de Zampieri mostram que o contato salvo como “Surrey Dólar SP” tratava com o advogado de operações financeiras fracionadas e trocas constantes de contas bancárias para movimentação expressivas de valores.

Em uma conversa, Zampieri afirma que receberia R$ 500 mil como “saldo do cliente” e questiona o doleiro sobre a possibilidade de transferir parte da quantia para sua própria conta.

“Bom dia. Tudo bem com o senhor? Primeiramente obrigado por ter me recebido naquele dia. Me ajudou muito”, inicia Zampieri no dia 30 de março de 2022, por volta das 11h.

“Hoje ou amanhã vou ter o saldo para receber do cliente, vai ser 500 mil em reais. Se eu precisar de uma parte para passar na minha conta, o senhor consegue?”, prosseguiu o advogado, frisando que a operação seria na moeda nacional.

“Tá bom. Eu te arrumo uma conta, sim. Só um minuto. Esse teste vai ser hoje”, respondeu Surrey poucos minutos depois.

Surrey tratava com o advogado de operações financeiras fracionadas e trocas constantes de contas bancárias, aponta PF
Surrey tratava com o advogado de operações financeiras fracionadas e trocas constantes de contas bancárias, aponta PF

No dia seguinte, Zampieri e o doleiro retomaram as tratativas sobre o meio milhão, e o advogado decidiu ficar com R$ 300 mil.

“Acho que hoje ou amanhã vai ser autorizado o senhor me passar 300 mil reais, mas esse eu preciso que o senhor passe na minha conta. Vou precisar. Pode ser?”, disse Zampieri.

“Sim. É para amanhã ou é para hoje? Te mando a conta, mas vou te passar na hora que estiver na conta, tá bom?”, respondeu Surrey em mensagem de voz.

“Vai ser amanhã”, confirma Zampieri.

A conversa de 1º de abril de 2022 começa com os dados bancários de Zampieri, sem o rotineiro “bom dia” para o doleiro.

“Para mim?”, pergunta Surrey ao ver o número da conta.

“Esse é o dado para ser feito o depósito. Assim que fizer, o senhor me avisa?”, diz o advogado, agradecendo em seguida pela “atenção” do doleiro.

Segundo diálogos anexados pela PF, as transferências do ‘saldo do cliente’ de Zampieri começaram em 4 de abril de 2022, por meio de repasses fracionados. A investigação descreve o método como uma “pulverização de valores reduzidos e periódicos, estratégia que dificulta a detecção individual das movimentações”.

“Para escapar à fiscalização dos órgãos de controle financeiro, organizações criminosas desenvolveram mecanismos cada vez mais sofisticados de circulação paralela de recursos ilícitos, tanto no território nacional quanto no exterior, notadamente por meio de complexas operações de compensação conduzidas por doleiros e seus operadores”, destaca a PF.

“Nessa lógica, a mescla de recursos ilícitos com receitas empresariais cria barreiras adicionais ao rastreamento, dificultando a identificação da trilha financeira e a conexão direta entre pagador e beneficiário final”, assinala a investigação.

Depois de fracionar os valores em transferências de R$ 15.555, R$ 16.307 e R$ 9.740, o doleiro perguntou ao advogado se o montante enviado estava correto.

“Desculpa o horário, mas eu queria saber se entrou alguma coisa mais fora isso. Porque eu tinha passado a conta para uma pessoa, que não me passou comprovante. Depois você pode somar para mim a quantidade que entrou aí, por favor?”, escreveu o doleiro às 21h30 do dia 4 de abril.

“Sim, senhor. Já vou ver agora e passo de volta”, respondeu Zampieri, sempre tratando o doleiro com deferência.

Ansioso, Surrey reiterou o pedido quatro minutos depois.

“Fala, parceiro. Pode dar uma somada aí no que entrou, por favor”.

“Hoje veio 131.189,00”, respondeu o advogado.

“Ok, amanhã completo”, explicou o doleiro, em referência aos R$ 300 mil que cairiam direto na conta de Zampieri.

‘Entrou tudo certinho?’

“Parceiro, amanhã eu zero, tá? O cara falou comigo, hein? Mas amanhã sem falta a gente zera bonitinho”, prometeu o doleiro no dia seguinte – 5 de abril de 2022.

“Quanto já foi até hoje?”, questionou o doleiro a Zampieri, que enviou uma foto de uma planilha contendo os repasses fracionados que, naquela altura, já somavam R$ 183 mil.

'Mescla de recursos ilícitos com receitas empresariais cria barreiras adicionais ao rastreamento, dificultando a identificação da trilha financeira', diz o relatório
‘Mescla de recursos ilícitos com receitas empresariais cria barreiras adicionais ao rastreamento, dificultando a identificação da trilha financeira’, diz o relatório

Dois dias depois, o valor solicitado por Zampieri ainda não tinha sido depositado. “Tenho que te mandar 267.250. Vê quanto falta”, avisou Surrey no dia 7 de abril.

“Dá uma checada pra gente zerar. E obrigado por tudo, viu? Precisar de mim aqui… Meu amigo vai te ligar, viu? Fazendeiro aí”, completou o doleiro.

A PF ressalta que as investigações sobre processos supostamente ‘vendidos’ que tramitavam no Superior Tribunal de Justiça concentram-se, sobretudo, em falências de empresas do agronegócio. Nenhum ministro é investigado. A Corte também não comenta investigações de alçada do Supremo.

‘Parceirão’

No dia 11 de abril, o doleiro alertou Zampieri sobre uma possível mudança de conta para os depósitos fracionados. “Eu posso mudar de conta? Que essa eu tive que dar em dinheiro pra pessoa”, disse Surrey, que ficou sem resposta de Zampieri.

Dois dias depois, mais um alerta sobre a origem das remessas.

“Parceirão, se você for depositar hoje, vou te dar outra conta. Me retorna, por favor, para ver se você consegue fazer hoje”, avisou Surrey. “Não faz, vou te passar outra conta, tá? Por favor, não faça mais nessa, senão perde o dinheiro. Não pode ser assim, parceiro. Puxa vida. A gente não pode falar com pessoas, entendeu? A nossa palavra aqui vale ouro”, seguiu o doleiro por mensagem de voz.

Para a PF, “os agentes da lavagem passaram a se valer de empresas efetivamente atuantes no mercado formal, muitas delas detentoras de marcas de ampla aceitação social, a fim de reduzir o risco de suspeição”.

COM A PALAVRA, O ADVOGADO ANIVALDO DOS ANJOS FILHO, QUE DEFENDE SURREY IBRAHIM MOHAMAD YOUSSEF

“O sr. Surrey Youssef é empresário do ramo de turismo e câmbio, com empresa regularmente constituída e em funcionamento, aberta ao público, há mais de 30 anos, atuando de forma lícita e sob fiscalização dos órgãos competentes.

Seu nome foi incluído como investigado na Operação Sisamnes, que tramita sob sigilo judicial em grau máximo, o que tem limitado o acesso da defesa aos autos. Das 625 laudas até agora disponibilizadas, há apenas em 8 laudas, referências a Surrey, restritas a conversas com Roberto Zampieri sobre questões exclusivamente ligadas às atividades objeto de sua empresa, sem qualquer relação com o objeto da investigação.

Surrey nega veementemente envolvimento em práticas ilícitas e reitera sua disposição em colaborar com as autoridades. Apesar da fragilidade probatória, vem sofrendo bloqueios patrimoniais excessivos, que dificultam a continuidade de suas atividades empresariais.

A defesa confia nas instituições e reafirma a necessidade de respeito ao devido processo legal e à presunção de inocência.”

COM A PALAVRA, OUTROS CITADOS

A reportagem do Estadão busca contato com as defesas de todos os citados na investigação. O espaço está aberto para manifestação (rayssa.motta@estadao.com; fausto.macedo@estadao.com; felipe.paula@estadao.com).

 

 

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