14 de novembro de 2025
Politica

O combate ao crime organizado e os riscos das ‘janelas de oportunidade’ legislativas

Não é novidade que o problema das organizações ou facções criminosas vem se tornando um problema cada vez mais sério em nosso país, vitimando um grande número de pessoas, submetendo comunidades inteiras a regras próprias do crime, gerando prejuízos econômicos e reputacionais ao país, cidades e regiões, fomentando a corrupção de agentes públicos e políticos, e ainda desafiando, ameaçando e chegando a eliminar autoridades, como vimos recentemente em relação a execução de um ex-Delegado-Geral da Polícia Civil de São Paulo.

A operação deflagrada recentemente na cidade do Rio de Janeiro, sem precedentes na história, trouxe a tona o tema de uma maneira poucas vezes vista no campo político. Sem entrar no mérito de tal operação, limitando-se a lamentar chegarmos a este ponto numa cidade que poderia facilmente rivalizar em número de visitantes com os maiores destinos turísticos do mundo se não fosse pela violência, fato é que os campo político-ideológico se apropriou do debate em termos de narrativas, relegando o seu campo técnico e prático a segundo ou terceiro plano.

Como exemplo do movimento legislativo açodado, destemperado, insuflado pelo bate-boca político-ideológico, próprio da chamada “janela de oportunidade” que foi criada no Congresso Nacional, tivemos a propositura de projeto de lei batizado de PL Antifacção com duas verdadeiras aberrações no que se refere ao combate a criminalidade organizada, seja no aspecto jurídico, seja no aspecto prático.

Primeiramente a classificação ou equiparação de organizações criminosas a organizações terroristas. Por definição, existem barreiras intransponíveis em termos de definições entre crime, ainda que organizado e violento, e terrorismo. Primeiro porque no crime se visa o lucro, a vantagem econômica ou de outra natureza, sempre indevida, enquanto o terrorismo tem objetivos políticos, ideológicos, religiosos, visando desestabilizar governos, disseminar ideologias, suprimir ou submeter etnias, se utilizando de métodos que incutam o terror e pânico, o que por vezes se dá pela prática de atos que por si só são crimes violentos, mas aqui qualificados como terrorismo pelas razões apontadas.

Ainda quanto a essa classificação ou equiparação do crime organizado ao terrorismo, temos que no aspecto prático isto poderia gerar consequências para o país, sem atingir o objetivo de minar as organizações criminosas. Basta lembrarmos da onda de classificação de crimes como hediondos ocorrida especialmente nas décadas de 1990 e 2000, o que não alterou em nada a situação, que hoje é pior no que tange ao panorama das organizações criminosas. Mais ainda, reconhecer pura e simplesmente como terroristas essas organizações pode levar a consequências drásticas em termos de comércio internacional, exigência de vistos para brasileiros e em última análise intervenções e sanções internacionais contra o Brasil, dentre outras consequências.

Importante aqui fazer a ressalva de que o endurecimento de penas, a criação e ampliação de mecanismos processuais penais e de investigação, regimes mais severos de cumprimento de penas, devem ser feitos. Não existe país no mundo que tenha lidado com problemas similares e conseguido melhorar a situação que não tenha trilhado este rumo. Basta pesquisar sobre o tema no combate a máfia e crime organizado nos Estados Unidos da América – especialmente Nova Yorque – o combate a máfia na Itália, o enfrentamento aos cartéis de drogas na Colômbia. Pode até ser que o arcabouço legislativo desses países seja tão ou até mais severo com o crime organizado do que com certas formas de terrorismo. Mas igualar situações complexas e totalmente diversas não tem precedentes nas experiências bem sucedidas que se conhece.

Sobre o tema basta pesquisar sobre a Lei RICO – Racketeer Influenced and Corrupt organizations Act de 1970 dos EUA, a Lei La Torre-Rognoni de 1982 na Itália, e a Lei 365 de 1997 na Colômbia, sendo que neste último país no mesmo ano de 1997 passou a ser permitida a extradição de criminosos vinculados a cartéis de drogas. Todas essas legislações fazem previsões duríssimas em termos de penas, confisco de bens, fortalecimento e especialização das polícias e previsão de ações integradas entre agências, combate fortíssimo a lavagem de dinheiro e desarticulação financeira, enfim, mecanismos que permitiram o efetivo combate a essas organizações.

A segunda proposta é algo tão fora do contexto existente que chegou a parecer que a ideia seria retroceder na tarefa tão árdua de combate a organizações criminosas. Trata-se da malfadada proposição de que a Polícia Federal teria de pedir autorização aos governos estaduais para investigar organizações criminosas. Chega a ser difícil acreditar que no afã de se aperfeiçoar o enfrentamento ao problema do crime organizado se proponha algo tão absurdo.

Cabe a Polícia Federal no nosso sistema constitucional a repressão a infrações que tenham repercussão interestadual ou internacional, conforme art.144, pár.1º, inc.I. Isto é uma decorrência lógica do sistema federativo, no qual as questões locais são tratadas por órgãos locais, as regionais por órgãos regionais (estaduais), enquanto as questões interestaduais ou com repercussão internacional são tratadas por órgãos da União. Pensar o contrário seria subverter o próprio sistema federativo em sua lógica. Isso sem falar no histórico da Polícia Federal em operações bem-sucedidas contra o crime organizado.

Analisando sob o viés prático, a violência, ameaça, coerção, intimidação e infiltração das organizações criminosas é sentida muito mais em nível local, demandando a ação de agências policiais de nível nacional, com agentes de outras localidades no geral, sem vínculo com a área dominada ou sob influência de organização criminosa. E ao final da investigação este agente e seus familiares não permanecerão naquela área onde ocorreu a investigação.

A experiência dos países que enfrentaram com algum sucesso este problema passou exatamente pela criação de órgãos ou forças-tarefas coordenadas por agências federais ou centrais, caso da Direzione Investigativa Antimafia italiana ou das Task Force dos EUA, que tem papel central no combate ao crime organizado naquele país.

Em qualquer discussão séria sobre este tema e com pessoas que minimamente o conhecem, as conclusões são inevitavelmente no sentido de se promover a especialização de órgãos policiais, do Ministério Público e do Poder Judiciário, editar legislação processual penal com mecanismos próprios ao enfrentamento das características do crime organizado (especialmente no campo probatório e investigativo), estimular cooperação interagências, fomentar estruturas de inteligência policial, se inserir na cooperação internacional, ter foco no combate a corrupção (especialmente de policiais e autoridades envolvidas no combate ao crime organizado, sem o que não há esse combate), minar os recursos financeiros do crime através da repressão à lavagem de dinheiro e do confisco de bens, e em se ter um sistema penitenciário eficaz em segregar as lideranças e romper as cadeias de comando criminosas.

Felizmente as duas propostas foram alvo de duras críticas por parte do meio acadêmico, político e da sociedade em geral. É fundamental que a sociedade esteja vigilante quanto a este tema, evitando a aprovação de propostas completamente ineficazes, que parecem partidas de quem desconhece o tema do combate ao crime organizado. O que não se pode permitir é que a “janela de oportunidade” se torne mais uma oportunidade para o crime organizado se perpetuar e cada vez mais nos tornar reféns da violência e do crime.

 

 

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