Quem salva uma vida salva toda a humanidade: o perigo da indiferença
“Quem salva uma vida salva toda a Humanidade” — este princípio, nascido da sabedoria talmúdica e reafirmado no coração da tradição judaica, alcança sua dimensão mais dramática quando confrontado com as grandes tragédias históricas em que vidas humanas foram sistematicamente destruídas.
Cada vida é um universo singular, dotado de memória, destino, vocação e dignidade; e quando se atenta contra uma existência, não se elimina apenas um indivíduo: interrompe-se a possibilidade inteira de um mundo.
À luz da “Shoah”, compreende-se que a destruição nazista não visou apenas eliminar corpos, mas aniquilar existência, apagando nomes, culturas, genealogias e futuros. Cada criança assassinada em Auschwitz representava uma futura escola não aberta, um lar que não se formaria, um Shabat que não se celebraria, um futuro que jamais aconteceria.
Mas a lição ética que se extrai dessa tragédia não pertence apenas ao povo judeu: ela se projeta como advertência universal e permanente, pois onde uma vida é destruída, toda a humanidade é ferida.
Essa verdade dolorosa também ressoa nos extermínios, perseguições e massacres vividos por outros povos e nações ao longo da história. Em cada uma dessas tragédias humanas, uma vida eliminada é também um universo destruído; um povo atingido é uma ferida aberta na história do mundo.
A memória da “Shoah” — assim como a memória de todos os genocídios e perseguições humanas — exige um compromisso: não negar, não relativizar, jamais esquecer!
Por isso, a frase “Quem salva uma vida salva toda a Humanidade” é hoje mais do que sabedoria espiritual ou mandamento religioso: é fundamento ético, político e civilizatório. Ela nos lembra que a humanidade não se destrói apenas quando morre uma multidão. A humanidade começa a morrer quando se permite que uma única vida deixe de ser reconhecida como portadora de infinito valor!
Salvar alguém da morte, da fome, da violência, da escravidão, da miséria, da perseguição, do racismo, da humilhação, do abandono ou do ódio é reafirmar que o ser humano é inviolável, e que nenhum projeto — nacional, ideológico, econômico, étnico ou religioso — pode reivindicar o direito de eliminar o outro.
Assim, a memória de cada tragédia humana nos conclama a uma só tarefa: salvar a vida, proteger a dignidade, honrar o futuro.
Salvar uma vida é restaurar o mundo; proteger um povo é proteger a humanidade.
Entendo que as considerações preliminares ora expostas guardam inteira pertinência com o tema discutido no excelente texto da jornalista DORRIT HARAZIM (“Indiferença ao Mal”), que trata, com grande propriedade, de questão da mais elevada sensibilidade e importância, referente ao grave problema da omissão e indiferença perante o mal !
A respeito desse precioso artigo, corretíssimo em suas observações, pareceu-me oportuno formular, a título de reflexão, algumas considerações de ordem pessoal.
A história da humanidade, em suas páginas mais sombrias, tem nos advertido, de modo eloquente e dramático, que o mal não necessita, para triunfar, apenas da ação dos perversos, dos tiranos ou dos que se deixam dominar pela sedução autoritária do poder. Não. Para que o mal prevaleça — como lúcidamente advertiu Edmund Burke — basta que os homens e as mulheres de bem se omitam, silenciando diante da afronta, acomodando-se à injustiça ou afastando-se, por covardia moral, do dever de resistir.
A indiferença, em sua frieza moral e em sua insidiosa passividade, converte-se na mais grave enfermidade espiritual das sociedades democráticas. Ela representa a falência do compromisso ético que deve animar a vida civilizada, pois, como recordou Hannah Arendt ao tratar da “banalidade do mal”, a tirania não se sustenta apenas pela vontade criminosa dos que mandam, mas pela abdicação intelectual, moral e política daqueles que, podendo erguer a voz, preferem não pensar, não ver e não agir.
O silêncio cúmplice — seja ele motivado pelo medo, pela indolência, pelo cálculo pessoal ou pela apatia — transforma o espectador em coautor moral do agravo à dignidade humana. É por isso que Dante Alighieri, com rigor poético e visão profética, reservou, na “Divina Comédia”, lugar de reprovação não apenas aos ímpios, mas também aos neutros, àqueles que, diante dos conflitos essenciais do espírito humano, se recusaram a tomar posição, tornando-se indignos até mesmo do inferno….
O pensamento republicano, desde Cícero, recorda que a virtude pública consiste na defesa intransigente do justo e do bem. A ética kantiana, por seu turno, ensina que nenhuma conveniência pode suplantar o dever moral. E o testemunho sofrido de Elie Wiesel, Primo Levi e Viktor Frankl, todos sobreviventes do Holocausto, demonstra que o terrível século XX não foi, lamentavelmente, apenas obra dos que oprimiram, exterminaram e degradaram, mas também dos que — vendo — nada fizeram.
A indiferença, pois, constitui perigosa forma de deserção cívica. Ela nega a solidariedade, afronta o princípio da fraternidade humana, despreza o mandamento ético revelado pelo rosto do Outro e compromete, de maneira profunda, o próprio sentido da democracia, regime político que não admite espectadores morais, mas exige participantes responsáveis.
Impõe-se, portanto, proclamar, com firmeza e sem ambiguidades, que não há neutralidade possível diante do mal, seja este exercido contra a pessoa, contra a sociedade, contra as instituições ou contra a ordem constitucional. Quem se omite, colabora; quem desvia o olhar, abdica da condição de sujeito moral da história.
Que jamais nos falte coragem, portanto — essa forma superior de lucidez ética —, para resistir ao mal, denunciá-lo e enfrentá-lo, como imperativo que se impõe à consciência, à Constituição e à dignidade da pessoa humana.
Há a considerar, ainda, a questão pertinente à responsabilização de quem – Estado, sociedade ou indivíduo – se omite perante o mal ou a ele se mostra indiferente.
Ou, em outras palavras, haverá punição para quem se omite e se mostra indiferente ao mal ?
A questão da responsabilidade pela omissão e pela indiferença diante do mal atravessa a história da ética, da filosofia e do Direito. Embora nem sempre o ordenamento jurídico consiga punir, de modo formal, a omissão moral de quem assistiu ao mal sem reagir, a tradição filosófica, a consciência ética das civilizações e determinados sistemas jurídicos afirmam que a omissão pode, sim, configurar culpa, corresponsabilidade ou até mesmo participação indireta no mal praticado.
No plano da Filosofia Moral, desde Aristóteles, já se reconhecia que a virtude não consiste apenas em evitar o mal, mas em praticar o bem, pois a ética é ação, não neutralidade.
Mais tarde, Kant consideraria moralmente reprovável toda conduta que, por comodidade ou interesse próprio, negue o dever de agir: quem pode impedir o mal e não o faz, viola o imperativo categórico, pois trata o próximo como meio descartável, e não como fim.
Hannah Arendt analisou de modo dramático essa omissão em seu conceito de “banalização do mal”, demonstrando que o mal extremo não precisa de monstros, mas de funcionários obedientes e espectadores indiferentes. A ausência de indignação, para ela, é uma forma de derrota ética.
No campo fenomenológico, o filósofo e pensador judeu, naturalizado francês, Emmanuel Lévinas, detido pelos nazistas – e cujos irmãos, além do seu próprio pai, foram vítimas durante a “Shoah”, assassinados pela SS – afirma, ao formular seu pensamento fundado na “ética da alteridade” (“responsabilidade radical do eu para com o “Outro”), que o rosto do “outro” nos convoca moralmente, e negar essa convocação — ou seja, recusar-se a agir quando o outro sofre — é uma transgressão do dever ético fundamental da responsabilidade pelo próximo.
A História, por sua vez, mostra que a omissão coletiva pode conduzir a consequências trágicas, e que a responsabilidade moral recai também sobre os que se calaram.
No Holocausto (“Shoah”), por exemplo, tanto Elie Wiesel quanto Primo Levi e Viktor Frankl denunciaram que milhões morreram não apenas pela ação monstruosa dos nazistas, mas pela omissão de sociedades inteiras, muitas das quais permaneceram indiferentes à marca do ódio e aos horrores perpetrados pelos totalitários nazistas nos campos de extermínio !!!
Durante os regimes totalitários do século XX, como o nazismo, o stalinismo e o franquismo, grande parte das violências se perpetuou pela passividade e pelo medo social.
Nelson Mandela, refletindo sobre o “apartheid”, afirmou que não é o ódio do opressor que mais prolonga a injustiça, mas o silêncio dos que dizem amar a justiça.
A punição histórica, nesses casos, manifesta-se como vergonha coletiva e legado moral condenatório, que se perpetuam por gerações.
Alguns sistemas jurídicos, de outro lado, reconhecem expressamente a responsabilidade por omissão. No Direito Penal contemporâneo, existe a figura da “comissão por omissão”, quando o agente, podendo e devendo agir, não impede o resultado ilícito.
Tribunais internacionais também reconheceram, no pós-guerra, que governantes e autoridades não podem alegar neutralidade ou obediência burocrática. Exemplo emblemático foi o Tribunal de Nuremberg, que fixou o princípio de que “obedecer não é desculpa moral nem jurídica”.
Hoje, a jurisprudência internacional discute a responsabilidade por omissão estatal diante de genocídios, limpeza étnica, desastres humanitários e violações massivas de direitos.
A indiferença, desse modo, pode – e deve – ser moralmente punida, filosoficamente condenada, historicamente lembrada e juridicamente responsabilizada!!!
Em suma: a omissão perante o mal não pode escapar ilesa.
Mesmo quando não alcançada pelo castigo penal, ela é julgada pela consciência, pela história, pela filosofia e pela memória dos povos.
O mal precisa da neutralidade para prosperar; a omissão, portanto, não é ausência de ação — é uma forma disfarçada de participação!!!
