22 de novembro de 2025
Politica

Direitos humanos e litigância estratégica extraterritorial

Introdução

Há temas que, por sua gravidade e interesse global, exigem um olhar que ultrapasse disputas domésticas e que cruze as fronteiras.

A recente decisão da justiça britânica na causa proposta pelo Município de Mariana e Outros contra o BHP Group é um deles.

Uma juíza da High Court de Londres concluiu, em primeira instância, que a mineradora australiana BHP é responsável pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 2015 em Mariana, Minas Gerais.

Mariana (2015) e Brumadinho (2019) foram duas tragédias irmãs, filhas do mesmo desleixo corporativo.

O colapso da barragem de Fundão, em Mariana, foi de responsabilidade da Samarco Mineração S.A., uma empresa controlada pela Vale S/A e pela BHP Billinton (agora BHP Group). O desastre ambiental de 2015 matou 19 pessoas e destruiu incontáveis propriedades, negócios e a fauna e a flora na bacia do Rio Doce.

Já o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão é atribuído à Vale S/A. Nesse evento ambiental, um dos maiores do planeta, morreram 272 pessoas.

A decisão inglesa proferida em 14 de novembro de 2025 diz respeito ao colapso de Mariana. Diferentemente do que alegaram alguns críticos (aqui), tal provimento judicial não feriu a soberania brasileira. Ao contrário: houve um exercício legítimo e necessário de justiça extraterritorial.

Litigância estratégica e tutela extraterritorial de direitos humanos

A decisão da High Court de Londres foi publicada em 14 de novembro de 2025 (leia-a aqui). A justiça local reconheceu em primeira instância a responsabilidade civil da BHP pelo evento catastrófico, que seria perfeitamente evitável, se a companhia tivesse adotado o princípio da precaução, que marca o direito ambiental, e cumprido as exigências de “due dilligence”, conforme a legislação brasileira.

Em matéria de direitos humanos (inclusive os direitos ambientais), o acesso à justiça deve ser amplo, especialmente quando as violações são praticadas por empresas multinacionais de grande envergadura econômica, com fôlego financeiro e capacidade de atrasar a prestação jurisdicional em anos ou décadas, enquanto as vidas das vítimas sobreviventes são consumidas pelo passar do tempo.

Por que a atuação judicial das vítimas no exterior ofenderia a soberania brasileira? Essa é uma falsa questão. Ninguém é obrigado a litigar. É um direito litigar. O lesado tampouco é obrigado a litigar numa certa justiça. Salvo restrições contratuais ou legais, o prejudicado pode escolher onde litigar, inclusive se o fará na via do Poder Judiciário ou se recorrerá a mecanismos de arbitragem ou a outras ferramentas da justiça multiportas.

Num planeta em rede, há ou pode haver múltiplas jurisdições simultaneamente aptas a decidir uma causa, e isso não é novidade. Por isso mesmo, existem regras de direito interno e internacional para resolver conflitos de leis.

A litigância estratégica transnacional – quando a ação judicial é proposta noutro país – tornou-se um importante mecanismo para a efetiva tutela de direitos humanos. As vítimas buscam jurisdições que possam prover justiça em melhores termos, ou com menor custo, ou com mais celeridade, ou que resultem em melhores indenizações.

Tal tipo de “global litigation” se guia pelos princípios do acesso à justiça, da tutela judicial efetiva e da boa administração da justiça.

É um comportamento estratégico legítimo dos litigantes, que procuram explorar permissões legais de diferentes jurisdições para acolhimento de demandas extraterritoriais, pelo critério da jurisdição pessoal (sobre a pessoa autora do dano ou sobre a pessoa vítima).

O caso BHP não foi o primeiro nem será o último. Antes dela, p. ex., a Volkswagen enfrentou situação similar no caso Dieselgate. A crônica forense internacional está repleta de casos semelhantes, como fruto de uma economia globalizada e de uma reticularização da advocacia, diante dos imensos desafios da compliance ambiental e em direitos humanos.

Onde há atuação empresarial transfronteiriça e mercados mundiais interligados, a responsabilização corporativa naturalmente também se transnacionaliza.

Para uma economia globalizada, uma justiça transfronteiriça, que cobra das companhias conformidade em direitos humanos (notadamente os DESCA), além das fronteiras.

Esse cenário deve sofrer uma importante consolidação nos próximos anos, quando estiver pronto (e em vigor) o “legally binding instrument on business and human rights”, em discussão no âmbito das Nações Unidas.

Este instrumento vinculante será um tratado internacional sobre empresas e direitos humanos, que terá previsão expressa sobre litigância estratégica no exterior (“offshore”).

Um dos dispositivos desse futuro documento internacional cuidará de jurisdição.

Segundo o artigo 9.1.c da minuta, um Estado Parte poderá julgar uma violação de direitos humanos praticada por uma corporação multinacional, quando esta tiver domicílio no território deste Estado Parte, ainda que o dano tenha ocorrido no exterior, no território de outra Parte.

Por fim, lembremos que uma decisão estrangeira (como a de Londres, no caso BHP) jamais tem efeitos diretos e imediatos no Brasil. Isso mostra que não há mesmo nenhuma violação â soberania nacional.

Salvo previsão expressa em tratado, a regra nas relações interjurisdicionais é a de que uma sentença cível estrangeira, para ter eficácia no Brasil, deve observar o prévio procedimento de homologação, previsto nos arts. 105 e 109 da Constituição e no Código de Processo Civil (CPC).

Ou seja, quando a decisão inglesa transitar em julgado, seus efeitos no Brasil estarão condicionados à prévia homologação pelo STJ, para execução perante a Justiça Federal. Este ponto já foi objeto de decisão monocrática do Ministro Flávio Dino, na ADPF 1178 (aqui): “decisões judiciais estrangeiras só podem ser executadas no Brasil mediante a devida homologação, ou observância dos mecanismos de cooperação judiciária internacional, conforme arts. 105, I, “i”, da Constituição Federal, e 26 e 27 do CPC“.

Isso só não ocorrerá se a decisão inglesa for inteiramente executável na própria jurisdição britânica, quando então nem sequer nossa soberania e nossa ordem pública estarão em jogo.

Na outra hipótese, caso haja obrigações a serem cumpridas no Brasil, a prévia homologação judicial pelo STJ protege nossa soberania e garante que a sentença estrangeira seja exequível no País, se compatível com nossa ordem pública e se não ofender a coisa julgada.

Um juízo especial da nação inglesa?

Trato agora de um segundo ponto. Na crítica que fez à decisão inglesa, o eminente ex-ministro Raul Jungmann argumentou que tal provimento evocaria o tempo das jurisdições extraterritoriais inglesas.

Nos processos “extraterritoriais” não ocorre uma sujeição da justiça brasileira à justiça estrangeira.

O fenômeno é diverso: trata-se da escolha voluntária de uma jurisdição entre duas ou mais “competentes”, para resolver uma mesma causa.

O instituto histórico do assim chamado “juiz conservador da nação britânica” nem de longe é comparável à litigância estratégica global, para a tutela de direitos humanos.

Os “juízes conservadores”, que chegaram a existir em Salvador e no Rio de Janeiro, por exemplo, resultavam de tratados iníquos (“unequal treaties”) celebrados entre as potências comerciais dos séculos 18 e 19 e países mais fracos, quase nações vassalas.

Eram capitulações. Eram como portas secretas por onde estrangeiros entravam noutro país com suas próprias leis na bagagem e um escudo de nacionalidade. O Estado anfitrião aceitava limitar seu poder soberano em favor de comerciantes e missionários estrangeiros, quase sempre europeus, em nome do comércio e da diplomacia.

A China, o Japão, Portugal e o Brasil foram vítimas desses tratados desiguais que instituíam justiças especiais para os cidadãos britânicos ou norte-americanos.

Este tipo de tratado leonino se extinguiu no século 20, quando se consolidou o princípio da igualdade soberana entre as nações.

No caso da litigância estratégica global, a situação é bem diversa das capitulações e dos “juízes conservadores”, porque o que se pretende com a escolha de foro extraterritorial é ampliar o acesso à justiça em prol de vítimas de lesões contratuais ou de danos a direitos humanos, onde quer que tenham ocorrido.

Bate-se à porta da justiça comum noutro país; não à porta de um juiz especial exclusivo, no mesmo país, acessível somente a certos cidadãos, como uma sala VIP da jurisdição.

Todas as vítimas de danos causados por “transnational corporations” (TNCs) podem litigar transnacionalmente, se assim o quiserem e se o direito do foro eleito assim o permitir.

A tutela dos direitos humanos também se beneficia da circulação global de “ativos”, cada vez mais livre no mundo contemporâneo.

 

 

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