23 de novembro de 2025
Politica

O erro do PT, o saldo da ação de Derrite no projeto de lei antifacção e os 3 desafios do Senado

Foram necessárias seis versões. Se governo e oposição tivessem o hábito de conversar com honestidade de propósitos quanto das polêmicas em torno do projeto de lei antifacção poderiam ter sido evitadas? Se ambos tivessem ouvidos personagens como o promotor Lincoln Gakiya e auditores da Receita e outros profissionais responsáveis pelos mais duros golpes cometidos contra o crime organizado nos últimos anos, hoje Hugo Motta e Lula poderiam anunciar a aprovação de um texto suprapartidário.

Guilherme Derrite, relator do projeto de lei antifacção: texto teve seis versões e a última sanou quase todos os problemas
Guilherme Derrite, relator do projeto de lei antifacção: texto teve seis versões e a última sanou quase todos os problemas

Não foram apenas interesses de 2026 e o cálculo político que levou às idas e vindas do relator do projeto na Câmara dos deputados. Guilherme Derrite sempre disse que estava aberto ao diálogo, mas na hora final se recusou a encontrar o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para tratar do texto antes de ele ir a plenário. Alegou que o governo lhe fechara a porta antes. Diante da falta de diálogo, perderam os dois: governo e oposição.

Não há vencedores ou perdedores nesse caso. Derrite havia feito uma primeiro texto em que esvaziava as atribuições da Polícia Federal retirando-a do combate a facções criminosas. Podia gerar ainda uma confusão jurídica interminável ao equipará-las com o terrorismo, provocando anos de discussão caso a caso sobre de quem seria a competência para julgar os crimes.

Diante da reação, voltou atrás. Esse foi seu mérito. O texto final aprovado pelo Congresso é extremamente diferente do inicial. E consegue melhorar propostas iniciais do governo. Basta ler e comparar os dois. Além da falta de diálogo e disputa política e o medo de uma nova Lava Jato, o que poderia explicar o contexto para tanta lambança na tramitação do texto?

Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, em audiência na Câmara dos Deputados
Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, em audiência na Câmara dos Deputados

O que ninguém percebeu é que as mudanças iniciais teriam uma razão: só retirando a PF da investigação dos crimes, Derrite poderia dar o outro passo de seu projeto, que era transferir para os governos dos Estados os bilhões que passaram a ser apreendidos das organizações criminosas. Com esse dinheiro, ele sonhava financiar a segurança pública, tornando-a independente dos recursos dos impostos. Foi o que disse ao Estadão há dois meses.

A luta pelo dinheiro estava por trás de tudo aquilo? O problema era que, ao fazer isso, e retirar a PF e a Receita dos processos de perdimento extraordinário de bens, o deputado gerava uma grande bagunça jurídica, podendo anular operações em andamento e beneficiar bandidos do PCC, do CV e acusados de Operações como Carbono Oculto e Cadeia de Carbono, cujos investigados mantém contatos estreitos com dirigentes partidários.

Ainda em sua quarta versão, o relatório de Derrite previa mecanismos que, segundo auditores fiscais e empresários, limitariam a ação da Receita e do Banco Central. Foi apenas na noite anterior à votação que o deputado apresentou a quinta versão e depois, horas antes da votação do projeto, a sexta versão do texto já com a sessão aberta. Ele fez o que disse que faria: escutou e acolheu sugestões. Tirou do plenário os principais bodes do texto.

No plenário, o PT, sob alegação de que o projeto ainda era ruim e descapitalizava a PF, decidiu votar contra até mesmo o texto base. Um erro. E vai pagar o custo político da decisão. No Palácio, se diz que o governo estava preparado para discutir a quinta versão do projeto de Derrite e, eventualmente, apresentar destaques. Como a sexta e última versão foi apresentada no momento da sessão, a possibilidade de analisá-la era reduzida e o governo não queria votar às escuras, depois de tantas polêmicas nas versões anteriores.

Os governadores de Goiás, Ronaldo Caiado, e do Rio, Cláudio castro, insistiam em equiparar crime organizado ao terrorismo; confusão jurídica podia anular milhares de processos e cautelares: Derrite abandonou ideia
Os governadores de Goiás, Ronaldo Caiado, e do Rio, Cláudio castro, insistiam em equiparar crime organizado ao terrorismo; confusão jurídica podia anular milhares de processos e cautelares: Derrite abandonou ideia

E, assim, Derrite, pôde contar com o apoio de toda oposição e do centrão, mas não da base do governo, embora o projeto inicialmente tivesse sido enviado ao Congresso por Lula. E o que diz o texto aprovado. Ele traz muitos avanços importantes no combate ao crime, como na questão do perdimento de bens depois que se preservou as competências da Receita e da PF. Também evitou a grande bagunça jurídica que seria discutir a competência para apurar os crimes caso tudo tivesse sido acostado na Lei Antiterror.

Também é consenso de que Derrite acertou ao propor penas maiores para líderes de facções e que eles cumpram de pronto a condenação em presídios federais, sem direito a visita íntima e com conversas gravadas. Também acerta em aumentar os prazos para a progressão de regime carcerário e em aumentar parte do tipos de organização criminal que serão punidos de forma mais dura. Parte já constava do projeto do governo. Outra não.

O que permanece então de problema no texto aprovado na Câmara? Segundo especialistas ouvidos pela colunas, são três as questões em aberto. A maior delas é a repartição do dinheiro para o combate ao crime. Derrite quer aumentar a grana dos Estados. Para tanto, terá de retirar da PF. Mas não estabelece contrapartida. E os critérios para tanto são confusos. Diz ele que o dinheiro de operação da PF é federal e o recuperado pelas polícias estaduais seria dos Estados. Operações conjuntas levariam à divisão dos recursos.

Eis o problema. Quem lê processos criminais e está familiarizado com operações policiais sabe que a coisa mais difícil na investigação de um grande esquema criminoso é que só uma polícia o tenha apurado. Ou um só Ministério Público. Existem operações conjuntas, mas existem ações que não se conversam e apuram as mesmas organizações por delitos distintos, levando ao bloqueio ou sequestro dos mesmos bens.

A Receita Federal participou da Operação Carbono Oculto Oculto, contra a captura feito pelo PCC de parte do setor de combustíveis: versão final de Derrite preserva prerrogativas do órgão
A Receita Federal participou da Operação Carbono Oculto Oculto, contra a captura feito pelo PCC de parte do setor de combustíveis: versão final de Derrite preserva prerrogativas do órgão

Quanto tempo a Justiça vai levar para decidir a quem caberá o dinheiro do que for leiloado? Não seria melhor que os recursos fossem divididos de acordo com a Justiça que decretou sua perda. Se for federal, uma parcela maior seria para a PF e uma menor aos Estados. E o contrário ocorreria se a ordem fosse estadual? E isso tudo depois de verificar quais as consequências teriam para a PF a nova divisão no combate ao crime organizado?

A segunda questão é que, ao optar por fazer um novo marco legal, Derrite deveria ter olhado como novos marcos são feitos. Podia apanhar o Novo Marco do Câmbio, de 2022. A lei do governo Bolsonaro trouxe no final do texto a lista de todas as leis, decretos e artigos que cancelava para que não restassem dúvidas sobre quais eram as disposições em contrário que estavam derrogadas. Derrite não fez isso, mas agora incluiu em muitos artigos o que a nova lei não muda para evitar que espertalhões tentem usá-la contra ações da Receita, do BC e da PF.

É verdade que em direito penal, quando duas normas subsistem, a mais branda é a que vale para o réu. E não adianta depois culpar a Justiça quando as novas penas, mais duras, não forem impostas aos acusados. Não vai ser culpa de nenhum garantista, mas da falha do legislador que deixou a brecha. O governo aponta esse problema. Quanto menos brechas forem deixadas aos espertalhões, melhor. Essa é uma discussão que pode acontecer? Talvez. Mas a sexta versão de Derrite fechou muito mais essa porta.

O último ponto polêmico ainda no projeto quase não encontra quem queira tocar nele, além do promotor Gakiya. E pode ser resumido assim: onde tudo é máfia, nada mais é máfia. Derrite corrigiu o texto original, criando a figura da organização criminosa ultraviolenta, mas que ainda precisa de melhor caracterização em relação às penas para as condutas de seus membros. Em resumo: é preciso diferenciar o aviãozinho do tráfico dos chefes e bandidões.

Qual a lógica de se prender um garoto de uma favela que há uma semana está vendendo droga para uma biqueira do PCC e condená-lo a 28 anos de cadeia sendo primário (10 anos por tráfico e 18 por pertencer à organização criminosa)? Ou mantê-lo na cadeia por quase vinte anos em regime fechado, uma pena maior do que a de quem assassinar sua mulher, que pode sair da cadeia depois de cumprir menos de dez anos? Não faz sentido.

Apesar das polêmicas remanescentes, é preciso repetir: quem leu a primeira versão do texto de Derrite e quem leu a última tem de reconhecer a enorme distância entre os dois textos. Quase todas as brechas foram sanadas. Derrite fez bem. O PT vai pagar o preço por votar contra o projeto sob a alegação de que é ruim. Tudo leva a crer que o partido não vai repetir o erro no Senado, para tanto bastará uma listinha de artigos derrogados? Tudo dependerá de como se vai responder à pergunta de um bilhão de reais: quem vai ficar com o dinheiro do crime?

 

 

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