21 de novembro de 2025
Politica

A família do policial morto em serviço não pode ser uma simples estatística de guerra

O amanhecer no Rio de Janeiro chegava com os barulhos de sempre: helicópteros cortando o céu, sirenes que nunca dormem e aquele tremor imperceptível no ar de uma cidade que vive entre o caos e a coragem. Ali, na pista quente de uma operação policial, dois homens tombaram sob o mesmo horizonte. Um carregava 20 anos de carreira; o outro, 40 dias de um sonho recém-vestido.

O veterano tinha as rugas da rua marcadas no rosto, o olhar de quem aprendeu que nem toda despedida tem um adeus. O novato ainda tateava a textura do próprio nome bordado no uniforme, espantado com o peso — e o orgulho vibrante, quase inconsequente — de finalmente estar onde sempre quis.

Ambos encararam o mesmo risco. Ambos tombaram sob o mesmo céu. Mas, no instante em que o uniforme foi recolhido, suas histórias — tão únicas — foram reduzidas ao mesmo cálculo indiferente.

Quando a notícia chegou às famílias, acompanhada daquele silêncio arrastado, que parece descolorir a cor dos móveis, emudecer a casa e sufocar, apesar das janelas abertas, não bastasse a dor, outra pergunta se impôs: “E agora?”

A resposta estava na letra fria da Constituição, reformada em 2019. A EC nº 103 decretara que a pensão por morte dos servidores civis seria de 50% da remuneração, mais 10% por dependente. Uma matemática de gabinete, incapaz de reconhecer a morte em operação como um sacrifício maior. Indiferente ao suor, aos medos, às despedidas, aos filhos que esperam na porta.

E assim, diante da norma, tanto o policial que dedicou duas décadas à segurança pública quanto o que ainda era recém-chegado deixariam para suas viúvas apenas 60% da renda, como se o Estado pudesse amputar 40% do futuro de quem ficou para trás.

Mas, de repente, algo começou a mudar.

No Congresso, entre discursos, ruídos e esperanças, surgiu a Emenda nº 8 à PEC 18/2025, um sopro de lucidez em um sistema endurecido. O texto propõe devolver aos profissionais de segurança pública civis aquilo que lhes é próprio: integralidade, paridade, proteção, dignidade. Mais do que isso: propõe corrigir aquilo que a reforma de 2019 feriu — a lógica, a justiça, a memória.

A Emenda define que, quando a morte decorre do serviço, a pensão não será mais de 60%, nem dependerá de filhos, nem obedecerá à frieza da cota familiar. Será integral. Será vitalícia. Será proporcional ao sacrifício de quem tombou, e não ao número de órfãos.

Pela primeira vez em anos, o texto constitucional começa a se dobrar diante da realidade das ruas. Começa a admitir que o risco não é teórico. Que a morte não é mera estatística. Que a família do policial morto em serviço não pode ser tratada como simples espólio de guerra.

A Emenda 8, mais que uma proposta legislativa, é um gesto simbólico: reconhece que o Estado deve honrar aqueles que não apenas o protegem — mas que avançam no perverso para defendê-lo — mesmo quando isso represente talvez o fim de suas reticências, transformadas em um ponto final.

Na casa das viúvas desses dois policiais civis, os bons rumores não apagam o luto. Mas devolvem algo que a reforma retirou: o sentimento de que a vida de seus maridos — e a morte deles — importa.

E talvez seja assim que a Constituição, esse livro que tenta narrar o país, se reescreve: não no mármore das salas silenciosas, mas no eco das ruas, no peso das fardas dobradas, no vazio das camas desocupadas, na coragem que insiste em existir mesmo depois do disparo final.

No fim, a história desses dois policiais — tão distintos no tempo, tão iguais no destino — pode finalmente encontrar justiça. E o texto da lei, enfim, começar a falar a linguagem da vida.

Porque, no fundo, é disso que se trata: de fazer com que o texto da lei pare de apenas acenar para a dor, de fingir preocupação quando a pressão social aumenta ou quando o calendário eleitoral exige discursos compassados. A Emenda 8 é a chance de romper com esse ritual de aparências e inaugurar um gesto verdadeiro — um gesto que não homenageia a morte apenas com palavras, mas que protege a vida com escolhas concretas. Um gesto que privilegia a realidade, e não a estética; o compromisso, e não a conveniência; a dignidade, e não o cálculo. Que o país aprenda, enfim, a escrever suas normas olhando nos olhos de quem veste a farda, e não nos termômetros momentâneos da política. Porque vida não se negocia, não se usa como adorno: vida se protege, se respeita, se honra.

E é isso que esperamos que a Constituição comece, de fato, a fazer.

 

 

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