28 de novembro de 2025
Politica

Marco Legal do Crime Organizado: avanços necessários, retrocesso inaceitável no Tribunal do Júri

Aprovado recentemente na Câmara dos Deputados, o PL 5.582/2025 foi apresentado como “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado no Brasil”. O texto traz avanços importantes: a ação civil autônoma de extinção de domínio, a criação do crime de domínio social estruturado, a repartição entre União e Estados das receitas dos bens perdidos, o endurecimento de critérios para progressão de regime e instrumentos mais robustos de cooperação e inteligência. Tudo isso dialoga com o que há de mais moderno no enfrentamento às facções: seguir o dinheiro, atingir o patrimônio, desorganizar o domínio territorial.

O problema é que o projeto esconde um grave retrocesso institucional: a retirada de parte dos homicídios da competência do Tribunal do Júri para levá-los às Varas Criminais Colegiadas. Homicídios praticados por organizações criminosas ultraviolentas, milícias ou grupos paramilitares, quando ligados ao domínio social estruturado, deixam de ser julgados pelo povo. Muda-se o rótulo em relação ao antigo “narcocídio”, mas a lógica é a mesma: fatiar, por lei ordinária, a competência do Júri nos crimes dolosos contra a vida.

A Constituição de 1988 fez uma escolha clara: entregou ao júri popular o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, “d”), elevando-o a direito e garantia fundamental. Quando uma lei ordinária retira desse universo um recorte de homicídios, rompe esse desenho constitucional e ainda abre uma brecha perigosa: outros recortes podem seguir o mesmo caminho, até que reste do Júri apenas uma casca simbólica.

A percepção de poder e capacidade de retaliação, aliás, não desaparece porque o homicídio é enquadrado como ligado ao art. 2º da nova lei. Basta lembrar o recente julgamento, pelo Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, de Marcelo Piloto, apontado como uma das lideranças do Comando Vermelho, condenado por matar a própria companheira porque não queria ser extraditado. Trata-se do mesmo tipo de agente, com idêntico potencial intimidatório, mas cujo crime não seria alcançado pela exceção prevista no PL.

O critério do projeto é, portanto, internamente incoerente. Retira do júri um recorte de homicídios conexos ao domínio social estruturado, mas deixa sob o mesmo júri outros homicídios praticados pelos mesmos agentes, com igual ou maior capacidade de intimidação, como feminicídio, briga de trânsito, rixa de bar. Não resolve o problema real da ameaça às instituições, apenas esvazia o júri.

Soma-se a isso um equívoco conceitual, a analogia com o latrocínio. Diz-se: “nem toda morte vai ao júri; o latrocínio é julgado pelo juiz togado”. O que se omite é a diferença estrutural. No latrocínio, a intenção inicial é de roubar e a morte qualifica o crime de roubo no curso da ação. Nos homicídios perpetrados por facções, milícias e demais organizações, o cenário se inverte: matar é o objetivo desde a origem, ainda que instrumentalizado para disciplinar o grupo, impor terror coletivo ou manter o domínio territorial. É exatamente esse tipo de morte, dolosamente buscada, que a Constituição quis submeter ao julgamento popular. Equipará-la à lógica do latrocínio é misturar planos distintos e abrir caminho para retirar do povo a decisão sobre as mortes mais graves do ponto de vista da ordem pública.

Além disso, os dados desmentem a ideia de que o júri seria “frágil” diante das facções. Levantamento do Ministério Público de São Paulo, com 4.043 processos únicos de homicídio doloso julgados entre 2000 e 2025, mostra que, nos casos com vínculo ao tráfico, cerca de 82,6% resultaram em condenação, índice superior ao dos homicídios sem essa relação (em torno de 77,1%). Exatamente nos homicídios associados ao crime organizado, o júri tem sido mais rigoroso, não mais leniente.

Essa resposta se explica por um tripé funcional que distingue o júri.

Em primeiro lugar, a soberania dos veredictos e o modelo da íntima convicção. A decisão do Conselho de Sentença não é um rascunho que possa ser revisado a qualquer tempo; é veredicto popular que só pode ser modificado dentro de margens muito estreitas. Ao julgar por íntima convicção, os jurados podem valorar o conjunto de prova como um todo, “de capa a capa”, inclusive elementos relevantes produzidos na investigação e não reproduzidos com a mesma força em juízo por conta do medo, da intimidação ou da coação de testemunhas.

Foi o que ocorreu, por exemplo, em caso recentemente julgado em Piracicaba, onde 15 integrantes do PCC espancaram até a morte um jovem, na presença de quatro adolescentes. Na delegacia, elas reconheceram os acusados com segurança; em juízo, já sob o peso do medo, recuaram, visivelmente constrangidas. Os jurados perceberam o comportamento errático, confrontaram-no com o restante do acervo probatório e condenaram os 15 réus. Um juiz togado, obrigado a se limitar às provas formalmente judicializadas e sem poder fundamentar a condenação naquilo que apenas “percebeu” do medo das testemunhas, teria muito menos espaço para transformar essa mesma realidade em decisão condenatória segura.

Em segundo lugar, o desenho do corpo de jurados. A cada julgamento, são sorteados, em regra, 25 cidadãos, dos quais apenas sete comporão o Conselho de Sentença. Ninguém sabe previamente quem serão os julgadores, nem se permanecerão no conselho até o fim. Isso torna difusa qualquer tentativa de constrangimento. Para intimidar o júri, seria preciso adivinhar, com antecedência, quem será sorteado, quem não será recusado e quem efetivamente votará. Na prática, a coação se torna quase impossível de ser operacionalizada de modo racional. Diante de um colegiado fixo de magistrados togados, ao contrário, o alvo é único e permanente.

Em terceiro lugar, desde o Tema 1.068 do STF, as condenações do júri admitem execução imediata. Nas mortes praticadas por organizações criminosas, isso significa resposta penal mais célere do que em grande parte dos processos decididos por juízes togados.

Ao retirar esses homicídios da competência do júri e entregá-los a órgãos togados, o projeto cria efeito colateral pouco discutido: abre-se espaço para que tribunais superiores se debrucem, por anos, sobre a valoração da prova travestida de discussão jurídica, em recursos sucessivos e protelatórios, empurrando o trânsito em julgado para muito adiante e permitindo, não raro, que penas só comecem a ser cumpridas décadas depois do crime (se cumpridas). Em lugar da resposta rápida e socialmente reconhecível que hoje se obtém no júri, corre-se o risco de ampliar a sensação de impunidade exatamente nos homicídios praticados por facções e milícias.

Se o problema é segurança, a solução já está ao alcance do legislador, sem necessidade de expulsar o povo do julgamento, com o uso de videoconferência, o anonimato dos jurados e o fortalecimento do desaforamento.

Em junho de 2025, por exemplo, o Tribunal do Júri julgou e condenou Roberto Soriano, uma das principais lideranças do PCC, em ambiente remoto, medida adotada exatamente para neutralizar riscos à segurança de todos, sem qualquer prejuízo à plenitude de defesa, ao contraditório ou à publicidade dos atos. O que protegeu o processo não foi a retirada do júri, mas a tecnologia colocada a serviço das garantias.

A experiência norte-americana mostra que é possível reforçar a segurança sem abolir o júri. Lá, desenvolveu-se o anonymous jury, em que os jurados são identificados apenas por números e têm seus dados preservados em casos de crime organizado. É solução que pode ser adotada também no país.

Da mesma forma, o desaforamento já permite deslocar o júri para outra comarca quando razões de ordem pública, imparcialidade ou segurança o exigirem. Em vez de subtrair os homicídios de facção do júri, o PL poderia reforçar esse instrumento, prevendo, por exemplo, a prioridade de desaforamento para capitais ou comarcas com mais de 300 mil habitantes nesses casos.

O caminho constitucionalmente correto, portanto, não é substituir o júri por colegiados togados, mas protegê-lo com uso ampliado e regulado de videoconferência, anonimato numérico e sigilo rigoroso dos dados dos jurados, desaforamento célere para grandes comarcas e sanções severas para quem tentar expor ou coagir o Conselho de Sentença.

O PL 5.582/2025 contém avanços para enfrentar o crime organizado, mas o preço embutido em seu texto, ao retirar do Júri parte dos homicídios praticados por facções e milícias, é alto demais. Cabe ao Senado preservar o que o projeto tem de avanço e suprimir o ataque à soberania popular no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Manter o júri nesses casos não é apenas honrar a Constituição, é impedir que justamente os homicídios que mais aterrorizam a população sejam aqueles em que a impunidade encontrará o terreno mais fértil neste país.

 

 

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