4 de dezembro de 2025
Politica

Há 70 anos, Brasil teve três presidentes em uma semana; entenda

O Brasil viveu uma crise profunda em novembro de 1955, com um plano de golpe de Estado, duas deposições e a posse de três presidentes da República. O Movimento de 11 de Novembro, ou “Novembrada”, é lembrado pelo contragolpe legalista, encabeçado pelo general Henrique Teixeira Lott, que garantiu a transição de governo a Juscelino Kubitschek.

Entre os dias 8 e 11 daquele mês, Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos ocuparam o mais alto cargo eletivo do País. A queda de braço culminou na fuga e deposição de Luz e no impedimento de Café Filho. Coube a Ramos ocupar o cargo de interino na Presidência, ao longo de 81 dias, até que o presidente eleito JK recebesse a faixa presidencial, em janeiro de 1956.

Antes da tumultuada semana, o País ainda se recompunha da convulsão gerada pela morte de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. O atentado da Rua Tonelero contra o deputado e opositor Carlos Lacerda acentuou as pressões pela renúncia de Vargas, capitaneadas pela União Democrática Nacional (UDN). As Forças Armadas engrossaram o coro, inflamadas pela morte do major da Aeronáutica Rubens Vaz, que escoltava Lacerda no episódio. Já os governistas acusavam a iminência de um golpe de Estado.

Em 24 de agosto de 1954, Vargas atira contra o próprio peito no Palácio do Catete. A forte comoção popular e a posse do vice-presidente Café Filho arrefeceram os ânimos de liberais, conservadores e militares. Por ora, caberia ao sucessor frear a agenda nacionalista e trabalhista, legada pelo varguismo, ao passo que a oposição se preparava para as eleições, a pouco mais de um ano.

Caixão com o corpo do presidente brasileiro Getúlio Vargas, durante velório no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, Brasil, Rio de Janeiro, RJ.1954
Caixão com o corpo do presidente brasileiro Getúlio Vargas, durante velório no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, Brasil, Rio de Janeiro, RJ.1954

Café Filho faz uma série de trocas nos Ministérios e privilegia quadros alinhados aos valores udenistas, como o economista liberal Eugênio Gudin para o Ministério da Fazenda. É em meio a essas mudanças que o general Henrique Teixeira Lott assume o Ministério da Guerra, no lugar de Zenóbio da Costa.

A aparente pacificação nacional foi curta: em outubro de 1955, Juscelino Kubitschek é eleito presidente da República com pouco mais de três milhões de votos, à frente do udenista Juarez Távora e de Adhemar de Barros, do Partido Social Progressista (PSP) — legenda do então presidente em exercício, Café Filho.

A derrota foi ainda mais amarga para a UDN, já que Távora liderava a contagem de votos, mas foi ultrapassado por JK graças aos votos do Nordeste e de Minas Gerais, já nos últimos dias de apuração.

À época, os eleitores também eram chamados à escolha do vice-presidente, e a decisão popular desagradou ainda mais os antigos opositores de Vargas. João Goulart, herdeiro político do velho estancieiro de São Borja, venceu a disputa com mais de 3,5 milhões de votos, superando Milton Campos (UDN) e Danton Coelho (PSP).

Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), era rejeitado por conservadores, liberais e grande parte dos militares. Ele fora ministro do Trabalho nos anos de Vargas e era visto por opositores como um simpatizante das revoluções socialistas de Cuba e China. Para as alas recém-derrotadas no pleito de 1955, era certo que a chapa JK-Jango reabilitaria uma agenda nacionalista e trabalhista, aos moldes getulistas.

Juscelino Kubitschek é aclamado ao chegar à convenção do PSD logo após a homologação de sua candidatura à presidência da República
Juscelino Kubitschek é aclamado ao chegar à convenção do PSD logo após a homologação de sua candidatura à presidência da República

O resultado foi logo contestado. O argumento era simples e conhecido: a vitória de Kubitschek e Goulart não era expressiva. Somados, os votos de Távora e Barros (4,8 milhões) eram superiores aos de JK (3,07 milhões). O mesmo valeria para a votação de Campos e Coelho (4,2 milhões) contra Jango (3,5 milhões). Pediam, portanto, uma eleição por “maioria absoluta”. Em 1950, quando da vitória de Vargas, o mesmo argumento havia sido utilizado. Também diziam, desta vez, se tratar de uma vitória da “minoria” — tese endossada pelo coronel Jurandir Bizarria Mamede, protagonista do episódio que aprofundou a crise.

O caso Mamede

O ministro da Guerra, general Lott, deixou o enterro do marechal Canrobert Pereira da Costa certo de que o discurso de Bizarria Mamede era digno de punição, por se tratar de um ataque frontal à institucionalidade do voto e à República brasileira.

Durante a cerimônia de sepultamento, em 31 de outubro, as falas agressivas do coronel questionaram não só a legalidade das eleições, mas seu valor democrático. Sobretudo, desobedeceram a ordens vindas do então presidente da República, Café Filho, para que discursos de tal natureza não fossem manifestados em público.

“Não será por acaso indiscutível mentira democrática, um regime presidencial que, dada a enorme soma de poder que concentra em mãos do Executivo, possa vir a consagrar, para a investidura do mais alto mandatário da nação, uma vitória da minoria? Não será também por acaso pseudolegalidade patente, aquela que ousa legitimar-se para defesa intransigente de um mecanismo adrede preparado para assegurar, em toda a sua plenitude, o voto do analfabeto, proibido por lei?”, dizia trecho do discurso de Jurandir Bizarria Mamede.

Lott levaria a demanda ao presidente interino, após o feriado de Finados. Chegando no Catete, em 3 de novembro, foi informado de que o chefe do Executivo havia sido internado às pressas, devido a um enfarte. O general decide ir ao hospital em que Café Filho se encontra, mas não passa da sala de espera. No mesmo dia, porém, o presidente receberia o ministro da Agricultura, Munhoz da Rocha. Fotos do encontro estamparam os jornais no dia seguinte, causando mal-estar ao ministro da Guerra.

Uma alternativa para Lott seria a reintegração de Mamede aos quadros do Exército, dado que o coronel servia ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) no momento. Isso permitiria ao ministro aplicar a punição, ele próprio, ao militar, mas não houve sucesso. Lott ainda relutava ao pensar que tal medida poderia atravessar a autoridade do presidente da República.

Oficialmente, a recuperação de Café Filho era tratada como incerta, e em 8 de novembro o presidente da Câmara dos Deputados assume a Presidência. Tão pronto Carlos Luz acede às novas atribuições, o ministro da Guerra é chamado a seu gabinete. Os dois já tinham se reunido dias antes e, à essa altura, Luz já conhecia a demanda do general — assim como todos os ministros e os militares próximos ao Executivo.

General Lott, ainda jovem, depois seria ministro da Guerra e teria papel decisivo na história
General Lott, ainda jovem, depois seria ministro da Guerra e teria papel decisivo na história

Lott, por sua vez, desconfiava do que estava por vir. A reunião, marcada para 10 de novembro com o presidente em exercício, não daria uma solução para o caso Mamede, mas trataria da troca do ministro da Guerra. O plano para demitir Lott fora-lhe revelado pelo deputado José Maria Alkimin. Na imprensa, corriam os mesmos boatos sobre a demissão.

“Não há nada a punir”, disse Carlos Luz ao general, durante o encontro no Catete. Antes da reunião, marcada para seis da tarde, Lott recebeu um “chá de cadeira” de quase duas horas no salão que se estendia até o gabinete do presidente. Viu diversos visitantes entrarem e saírem da sala, enquanto a imprensa cobria a longa espera, interpretada como uma provocação ao ministro.

“Não posso ser responsável por uma organização em que a disciplina não é respeitada”, retrucou Lott. Ouviu que o general Fiúza de Castro seria nomeado para o seu lugar. De fato, o Diário Oficial, fechado às cinco horas, já anunciava a mudança.

A trama se desenrolava como Alkimin e aliados do Movimento Militar Constitucionalista (MMC) haviam alertado: o Brasil estava à beira de um “golpe branco” para impedir a transição de governo a JK, e Henrique Teixeira Lott era o grande empecilho.

Nas próximas horas, as avenidas e praias do Rio de Janeiro seriam palco de um teatro de guerra, com tropas e tanques nas ruas e atividade militar nos fortes que guardam a entrada e saída de navios na Baía de Guanabara. Estava montado o contragolpe dos legalistas.

Medo e lençóis brancos em Copacabana

A madrugada de 11 de novembro foi intensa. General Lott fez uma série de ligações e colocou as tropas na rua. O Palácio do Catete, o Departamento Federal de Segurança Pública e os Correios foram ocupados, assim como o jornal A Noite e a Rádio Nacional. Em seguida, unidades do Exército foram acionadas Brasil adentro, entre elas a Zona Militar do Centro, em São Paulo — estratégica para estancar uma possível base para os golpistas.

Os apoiadores da chapa JK-Jango se reuniram, horas antes, para articular uma resposta política, por meio do Congresso Nacional, à tentativa de golpe. Ficou combinado que José Maria Alkimin convocaria uma sessão na Câmara dos Deputados, logo cedo, para denunciar a conspiração em curso e propor o impedimento de Carlos Luz.

O general Odylio Denys, amigo de Lott, também havia convocado outros dez generais para um encontro — concordaram em restabelecer a ordem militar e depor o interino Carlos Luz. Os militares que apoiassem a ruptura institucional seriam detidos. Os boatos de um contragolpe ganhavam forma e força. Percebendo as muitas movimentações atípicas do Exército e dos parlamentares, os conspiradores colocaram em prática seu plano de fuga.

O conflito atingiu seu ápice naquela manhã, pouco depois das nove horas, quando o cruzador de guerra Tamandaré zarpou da Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara, a caminho do Porto de Santos. A bordo estavam Carlos Luz, Bizarria Mamede, Carlos Lacerda e uma guarnição com mais de mil homens que planejavam arregimentar um “grupo de resistência” às forças legalistas em território paulista. Mas a fuga da baía seria frustrada.

Os fortes de Copacabana e de Duque de Caxias abriram fogo contra a embarcação, que tinha desatracado no Arsenal da Marinha. Os disparos seguiam as ordens do general Lott: “É melhor perdermos o navio com quem está a bordo do que ter guerra civil no Brasil”, justificou.

Em meio ao fogo aberto, moradores na linha de tiro estendiam lençóis brancos nas janelas dos prédios, ao longo da Avenida Atlântica, que liga os bairros de Copacabana e Leme. A população temia que o navio, carregado de munição, revidasse o ataque vindo das fortalezas — um estilhaço contra os residentes seria catastrófico.

Mas não houve resposta do Tamandaré, que conseguiu emparelhar com um cargueiro e sair da baía em direção a Santos. O desembarque na costa paulista, no entanto, seria inviável e a embarcação militar voltaria ao Rio, horas depois. São Paulo já não era seguro para os conspiradores.

No Congresso, votou-se pelo impedimento de Carlos Luz, naquele mesmo dia 11 de novembro. O próximo na linha sucessória, de acordo com a Constituição de 1946, seria o presidente do Senado, Nereu Ramos, filiado ao PSD de JK. Chegava assim ao mais alto cargo do Executivo federal o terceiro presidente da República, em menos de uma semana.

Capa do O Estado de S. Paulo do dia 12 de novembro de 1955 anunciava a deposição de Carlos Luz por um
Capa do O Estado de S. Paulo do dia 12 de novembro de 1955 anunciava a deposição de Carlos Luz por um “contragolpe” liderado pelo general Henrique Teixeira Lott

A disputa dos legalistas contra as forças da UDN, no entanto, ainda não tinha acabado. Para assegurar a transmissão da faixa presidencial a Juscelino Kubitschek e a vice-presidência a João Goulart, o presidente interino Nereu Ramos teria de decretar estado de sítio. Não sem antes o general Lott impedir o retorno de Café Filho ao Executivo.

Cientes de que o vice de Getúlio Vargas havia facilitado os planos para o “golpe branco”, a decisão de Lott e do MMC foi de cercar o apartamento de Café Filho, em 21 de novembro, com tanques de guerra e unidades militares. Apesar da alta hospitalar, Café não poderia sair de casa até o dia seguinte.

Assim como aconteceu com Carlos Luz em 11 de novembro, Café Filho teve seu impeachment votado e aprovado no Congresso, no dia 22 daquele mês. Por fim, em 31 de janeiro de 1956, JK e Jango assumiram o governo.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *