Mais de mil promotores entregam manifesto a relator do projeto antifacção contra fatiamento do júri

Mais de mil promotores e procuradores de todo o País estão mobilizados para derrubar uma proposta embutida no projeto de lei antifacção que retira do Tribunal do Júri competência para julgar integrantes de milícias e facções do crime organizado, réus em processos por homicídios dolosos.
Inconformados com o que consideram ‘fatiamento’ e ‘esvaziamento’ da competência do júri popular um grupo que lidera o movimento levou manifesto com 1167 assinaturas ao senador Alessandro Vieira (MDB-SE) – relator do antifacção – expondo as razões do Ministério Público para sua ‘veemente oposição’ à alteração contida no Projeto de Lei 5.582/2025 – que prevê a criação de um marco legal para o combate às organizações armadas, tipificando novos crimes e endurecendo penas.
O Tribunal do Júri é uma instituição tradicional e cara aos promotores e também a advogados e juízes. O colegiado tem atribuição para julgar crimes dolosos contra a vida – homicídio, feminicídio, infanticídio, aborto. Ele é presidido por um juiz togado, de carreira, e formado por sete cidadãos – jurados leigos – sorteados na abertura do julgamento.
O documento ao Senado é subscrito por nomes de peso e prestígio do Ministério Público Estadual e do MP Federal, entre eles procuradores-gerais de Justiça. “A eficiência do Tribunal do Júri no combate ao crime organizado não está apenas em palavras, mas em dados de realidade”, assinala Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, procurador-geral de Justiça de São Paulo.
Segundo ele, ‘em mais de 4000 processos analisados, o índice de condenação de homicídios relacionados a tráfico de drogas, por exemplo, atingiu 82%, números superiores aos casos de homicídios que não possuem essa relação’.
“Ou seja, o Tribunal do Júri cumpre a sua função de entrega de Justiça e o que é mais nobre, pelas mãos do povo”, pontua Paulo Sérgio de Oliveira e Costa.
Seu colega, Rodrigo Fonseca Costa, chefe do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, é enfático. “A retirada desses crimes do Júri preocupa profundamente, pois enfraquece a legitimidade da justiça criminal. Quando se afasta o povo do julgamento de atentado doloso à vida humana, viola-se a Constituição.”
Para o subprocurador-geral da República Juliano Baiocchi Villa-Verde de Carvalho, ‘o projeto de lei, ao reduzir a competência do Tribunal do Júri, acaba por afastar ainda mais o povo do exercício direto da soberania’.

‘Olhar da sociedade’
Presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público Federal (AMPF), Baiocchi Villa-Verde atuou durante seis anos na competência originária do Supremo Tribunal Federal. Ele considera que ‘em termos constitucionais, o ideal seria alargar a competência popular’.
O procurador-geral de Rondônia, Alexandre Jésus de Queiroz Santiago, avalia que ‘o Tribunal do Júri é o olhar da sociedade na proteção do direito à vida’.
“Devemos sempre trabalhar para fortalecer essa instituição, que é constitucional, ampliando as garantias da sociedade e o seu protagonismo dentro do sistema de justiça.”
Paulo de Tarso Morais Filho, chefe do Ministério Público de Minas, alerta que ‘ao suprimir do Tribunal do Júri a competência para julgar os homicídios cometidos por facções, não se fortalece o enfrentamento ao crime organizado’.
“Enfraquece-se a voz soberana do povo, abalam-se os alicerces constitucionais que preservam a democracia e fragiliza-se a própria ideia de Justiça, em sua dimensão mais humana, participativa e legítima”, argumenta Paulo de Tarso.
‘Impunidade endêmica’
Para um dos organizadores da grande mobilização, Aluísio Antônio Maciel Neto – promotor de Justiça do MP de São Paulo -, ‘a subscrição do manifesto por colegas de todos os Estados, do Ministério Público Federal e do Ministério Público Militar, revela o que presenciamos no exercício de nossas funções diárias’.
“O Tribunal do Júri cumpre a sua missão constitucional na punição de crimes que envolvam morte e organizações criminosas nos quatro cantos deste país”, ele afirma. “Retirar essa competência, mais do que uma medida inconstitucional, é contribuir com a impunidade endêmica que acomete o país.”
O procurador-geral do Rio de Janeiro, Antônio José Campos Moreira, crava que ‘o projeto, apesar dos seus significativos avanços em relação aos instrumentos legais de enfrentamento ao crime organizado, no que concerne ao chamado narcocídio, além de inconstitucional, constitui inegável retrocesso ao afastar do júri o julgamento desse crime, dificultando, sobremaneira, sua punição’.
Alexandre Sikinowski Saltz, procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, diz que ‘alterar a competência do Tribunal do Júri é inconstitucional’. Ele faz um alerta. “A mudança tem potencial de geração de impunidade, considerando as peculiaridades dos crimes contra a vida praticados por organizações combinadas ao tráfico.”
O chefe do MP do Espírito Santo, Francisco Martinez Berdeal, defende a atuação dos membros do Ministério Público no Tribunal do Júri. “Tem sido decisiva para a obtenção de um elevado índice de condenações dos réus levados a julgamento. A Justiça tem sido feita, e grandes lideranças de organizações criminosas vêm recebendo penas à altura da gravidade de seus crimes.”
Para Berdeal, ‘tais condenações têm impacto direto na redução dos índices de homicídio no Espírito Santo que, neste ano, caminha para registrar o menor patamar desde o início da série histórica, em 1996’.
O procurador-geral Abel Andrade Leal Junior, do Tocantins, adverte que ‘é essencial que o País não perca de vista o que está em jogo com essa mudança, a competência constitucional do júri, que é instrumento da democracia que pode ser diminuída e minimizada’.
“Além disso, estudos empíricos demonstram que o povo, mesmo no julgamento de membros de facções criminosas não se acovarda e dá a devida resposta nas sessões plenárias”, completa Abel Andrade.
Garantia fundamental
O que deixa indóceis os promotores é o fato de que o Tribunal do Júri ‘é cláusula pétrea e, como tal, não se altera por lei ordinária’. “O artigo 5.º da Constituição é inequívoco: a instituição do júri é direito e garantia fundamental, com competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Não se trata de mero detalhe técnico, mas de uma escolha estrutural do constituinte sobre quem deve decidir, em última instância, se o Estado pode ou não condenar alguém por tirar a vida de outra pessoa”, destaca o manifesto nacional.
Os promotores anotam que ‘o Tribunal do Júri é justamente uma das formas de exercício de democracia direta no âmbito do Poder Judiciário, ao lado, por exemplo, da ação popular na esfera do controle de atos da Administração’.
“Retirar do júri, por lei ordinária, uma parcela de homicídios dolosos – justamente aqueles praticados em contexto de facções, milícias ou grupos armados – significa, na prática, deslocar para outro órgão aquilo que a Constituição entregou ao julgamento popular direto”, segue o texto levado ao Senado.
Para os promotores, ‘abre-se um precedente perigoso, o fatiamento da competência do Tribunal do Júri’. “Hoje, subtraem-se os homicídios ligados à criminalidade organizada, amanhã poderão ser retirados outros, considerados ‘incômodos’ ou ‘sensíveis’, esvaziando paulatinamente a instituição.”
Os membros do Ministério Público dizem que ‘não se combate o crime organizado restringindo direitos fundamentais e rasgando silenciosamente a Constituição’.
“O Tribunal do Júri não é obstáculo ao enfrentamento das facções”, alegam. “Ele é, precisamente, uma das expressões mais claras do Estado Democrático de Direito na sua face penal e um canal qualificado de participação direta do povo no exercício da jurisdição criminal.”
